segunda-feira, 22 de março de 2010




Aquilo um dia vai se chamar saudade

* Por Eduardo Murta

Era da mãe, exatamente da mãe, que Lia se lembrava no momento em que a terceira lágrima desmanchava-lhe os contornos da maquiagem. Do jogo de espelhos do salão, ela custou a crer, emergindo a imagem de ninguém menos que Vandique. Na ruela, ao refúgio do bambuzal, em beijo de enrosco carnavalizado. Adeus baile de Primavera, adeus noivado, adeus juras de um querer eterno. Tivesse dado ouvidos a Dona Jandira... “Esse moço tem nome de cafajeste, cara de cafajeste, cheiro de cafajeste”. Ela se afogando em filetes de angústia e, súbito, aquilo se convertendo em ódio, ao flagrar traços familiares na mulher que completava a cena. Cabelos ruivos, cintura delineada.... Não, não, não... Por Deus, não!! Como podia? Rosalinda, amiga, a quem secretara sonhos e, bandida, desnudara até mesmo a troca de carícias em começo de namoro.

Pensou em destilar a mágoa em estrita solidão. Se resignar, fazer voto de silêncio, de castidade futura. Deixou as pálpebras baixarem por um instante, invocou serenidade e, de volta, lá estavam eles. Se amassando, se tocando... Ah, furor felino se acercando feito fosse estupor de vulcões. Desgarrou-se da cadeira, lançou longe o forro que a envolvia e tomou posse do primeiro secador de cabelos que viu à frente.

A mulherada, surpresa ao estilo estouro de boiada, a seguiu. Ao meio da rua, ela em rolinhos, a face borrada em choro e pintura, avançou rumo ao epicentro daquele tremor de terra. A tempo de vislumbrar as mãos do noivo fazendo molde a um par de seios generosos. Espatifou-lhe o aparelho à testa antes que pronunciasse qualquer palavra. O sangue aflorando em abundância.

E deu a repetir, ainda que se desmilinguisse num pranteado de soluços: cachorro, vadia, nunca mais... Lia se recorda dos braços aparteando sua fúria e do mundo girando, girando, se apagando. Despertou dia seguinte. Olhos inchados. Sentimentos confusos. Choramingando um nome. Vandique, Vandique, Vandique. Dona Jandira exaurindo-lhe o suor à testa. Domando-lhe os lábios, a que esquecesse tudo, recomeçasse.

Em vão. Semanas, e sob febre de saudade, se transformando em escrava do delírio. Se imaginou em maratona de amor com o renegado. A fertilidade lhe exalando por inteiro. E, fértil, enxergou-se em estado de gravidez. A barriga tomando formas outras, os peitos ganhando volume, robustez. E leite!! Fosse homem, seria Dique. Mulher, batizaria Vanda.

Pôs tudo em jeito tão verossímil, que a mãe logo exibiu orgulho de avó. Espalhou para a vizinhança, celebrou em chá com as amigas. Iniciou a formação do enxoval. Pecinhas neutras, em azul e amarelo. O primeiro exame no posto de saúde só ao quarto mês, um retorno marcado para o sétimo, e o parto já agendado, porque doutores por ali eram raridade.

À mesa de cirurgia, cinco horas em trabalho, e veio o choro. Era choro só de Lia. O médico boquiaberto, sem saber ao certo o que apontar em suas anotações. Lá, descreveu: aos 18 dias do mês de março, nesta cidade, uma mulher deu à luz...deu à luz algo sem forma, sem cor. Nem matéria era. Só cheiro. Numa abundância que, capricho da natureza, foi se convertendo em outro fenômeno, fazendo engravidar mulheres e homens da cidade. E a perfumou numa saudade serena, doída. Destas de borrar maquiagem, de inspirar escaladas aos morros para incensar a esperança de que, dia qualquer, volte um alguém qualquer, se apague uma dor qualquer.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.

3 comentários:

  1. Nossa quanto sofrimento...quanta
    amargura e tantos sonhos desfeitos.
    Não sei se me entregaria assim...não me
    vejo definhando por amor. Mas, senti tanto
    por ela...
    Parabéns Eduardo.
    Beijos

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  2. Em medicina, essa "coisa" se chama pseudociese. Ela se engravidou de amor, e esse néctar exalado foi fertilizar outros apaixonados. Aqui também virou verdade os versos de Cartola: " as rosas, não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti". A fúria homicida foi amor transmutado. Lindo conto Murta!

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  3. Quantos não vivem "grávidos" de sentimentos, de decepções, de revolta, não Eduardo? Belo conto. Parabéns!

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