domingo, 4 de fevereiro de 2018


Cumplicidade anímica


O escritor estabelece cumplicidade com seus leitores. Trata-se de afirmação até acaciana, de tão óbvia, mas que muitos não se dão conta. Isso ocorre à sua revelia, pois ele não tem a menor noção de quem irá ler o que escreve e, por consequência, por quem irá se identificar com seu teor. É mais correto dizer, pois, que quem lê é que vê naquele que escreve o seu cúmplice, não o vice-versa Não é o escritor que escolhe o leitor (antes fosse), mas é exatamente o contrário. Da minha parte, escolho os autores que pensam mais ou menos o que penso e que, sobretudo, têm o que me acrescentar, em termos de informações, emoções e reflexões.

Essa cumplicidade, esclareça-se, não é física. Raramente escritor e leitores se conhecem pessoalmente. Ela é sentimental, afetiva, diria anímica. E costuma durar para sempre. Tenho, por exemplo, meu elenco de autores favoritos e são muitos, muitíssimos. E a cada semana, senão a cada dia, se amplia mais e mais. Torna-se impossível, por exemplo, declinar minhas eventuais preferências. Gosto de todos por igual, com a mesma intensidade. Quem acompanha meus textos – ou seja, quem é meu “cúmplice” – conhece, razoavelmente, o elenco dos escritores que aprecio. Cito-os, amiúde, e essas citações decorrem, naturalmente, da nossa “cumplicidade”. Ou melhor, da minha para com eles.

Entre minhas preferências estão os livros da mineira Adélia Prado. Perdi a conta de quantos poemas dela eu já li. E continuarei lendo tantos quantos venham a me cair em mãos. Por falar nessa poetisa, aproveito para recomendar “A duração do dia”, livro lançado em 2011 pela Editora Record. Claro que o recomendo especificamente aos que acreditam em mim, sobretudo no meu propalado bom gosto, ou seja, aos meus cúmplices.

Acho um tanto esquisito falar de livros de poesia sem apresentar ao leitor pelo menos uma amostra do seu conteúdo. Nesse aspecto, não vou deixar vocês na mão. Selecionei, de “A duração do dia”, de Adélia Prado, este poema, característico do seu estilo e da sua temática, intitulado “Tão bom aqui”:

Me escondo no porão
para melhor aproveitar o dia
e seu plantel de cigarras.
Entrei aqui pra rezar,
agradecer a Deus este conforto gigante.
Meu corpo velho descansa regalado,
tenho sono e posso dormir,
tendo comido e bebido sem pagar.
O dia lá fora é quente,
a água na bilha é fresca,
acredito que sugestiono elétrons.
Eu só quero saber do microcosmo,
o de tanta realidade que nem há.
Na partícula visível de poeira
em onda invisível dança a luz.
Ao cheiro de café minhas narinas vibram,
alguém vai me chamar.
Responderei amorosa,
refeita de sono bom.
Fora que alguém me ama,
eu nada sei de mim”.

Gostaram? Se vocês forem, de fato, meus cúmplices, não há porque não gostar. E, se estiverem lendo estas descompromissadas reflexões, a cumplicidade em questão é uma realidade entre nós. Esta se manifesta com maior intensidade com nossos poetas preferidos, embora possa ocorrer, também, com cronistas, contistas, romancistas e novelistas. É o que ocorre comigo, por exemplo, em relação a Jorge Luís Borges. Este meu “guru” faleceu, se não me falha a memória, em 1984. Nunca houve, óbvio, nenhum contato pessoal entre nós. Ele sequer tomou ciência, por qualquer meio que fosse, de que eu existia. No entanto...

Tenho inúmeros livros de Borges, quer traduzidos, quer no original, em espanhol. Sempre que tenho notícia de alguma republicação de sua obra, dou um jeito de adquiri-la. E “devoro”, sofregamente, página por página, do que escreveu. Parece-me que suas mensagens são pessoais, dirigidas exclusivamente para mim. Não são, é claro. Mas ajo como se fossem.

Aliás, meu grande “guru” tem um poema em que explica esse fenômeno de cumplicidade. Seu título? O mais óbvio possível: é “Ocúmplice”.

Descobri-o em um site de Portugal e a tradução é do escritor português Fernando Pinto do Amaral.
O referido poema diz o seguinte:

Crucificam-me e eu tenho de ser a cruz e os pregos.
Estendem-me a taça e eu tenho de ser a cicuta.
Enganam-me e eu tenho de ser a mentira.
Incendeiam-me e eu tenho de ser o inferno.
Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo.
O meu alimento é todas as coisas.
O peso exato do universo, a humilhação, o júbilo.
Tenho de justificar o que me fere.
Não importa a minha felicidade ou infelicidade.
Sou o poeta”.

Como não gostar de um sujeito tão inteligente e sensível? Como não ser seu cúmplice, em suas aventuras literárias? Infelizmente, não tive o privilégio e nem a mais remota possibilidade de conhecê-lo pessoalmente. Como, também, jamais mantive qualquer tipo de contato pessoal com Adélia Prado. Com a poetisa mineira, porém, ainda há alguma esperança de algum encontro. Mas com Borges... Eu teria altos papos com ambos, caso os encontrasse, sobre a vida, os sentimentos, as amizades, o amor, a felicidade etc.etc.etc. E, sobretudo, sobre essa nossa paixão comum, que nos torna cúmplices desse “crime” inenarrável, que é o de bisbilhotar sentimentos e comportamentos alheios e de divulgá-los aos quatro ventos.


Boa leitura!

O Editor.



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