Cumplicidade
anímica
O
escritor estabelece cumplicidade com seus leitores. Trata-se de
afirmação até acaciana, de tão óbvia, mas que muitos não se dão
conta. Isso ocorre à sua revelia, pois ele não tem a menor noção
de quem irá ler o que escreve e, por consequência,
por quem irá se identificar com seu teor. É mais correto dizer,
pois, que quem lê é que vê naquele que escreve o seu cúmplice,
não o vice-versa Não é o escritor que escolhe o leitor (antes
fosse), mas é exatamente o contrário. Da minha parte, escolho os
autores que pensam mais ou menos o que penso e que, sobretudo, têm o
que me acrescentar, em termos de informações, emoções e
reflexões.
Essa
cumplicidade, esclareça-se, não é física. Raramente escritor e
leitores se conhecem pessoalmente. Ela é sentimental, afetiva, diria
anímica. E costuma durar para sempre. Tenho, por exemplo, meu elenco
de autores favoritos e são muitos, muitíssimos. E a cada semana,
senão a cada dia, se amplia mais e mais. Torna-se impossível, por
exemplo, declinar minhas eventuais preferências. Gosto de todos por
igual, com a mesma intensidade. Quem acompanha meus textos – ou
seja, quem é meu “cúmplice” – conhece, razoavelmente, o
elenco dos escritores que aprecio. Cito-os, amiúde, e essas citações
decorrem, naturalmente, da nossa “cumplicidade”. Ou melhor, da
minha para com eles.
Entre
minhas preferências estão os livros da mineira Adélia Prado. Perdi
a conta de quantos poemas dela eu já li. E continuarei lendo tantos
quantos venham a me cair em mãos. Por falar nessa poetisa, aproveito
para recomendar
“A duração do dia”, livro lançado
em 2011 pela
Editora Record. Claro que o recomendo especificamente
aos que acreditam em mim, sobretudo no meu propalado bom gosto, ou
seja, aos meus cúmplices.
Acho
um tanto esquisito falar de livros de poesia sem apresentar ao leitor
pelo menos uma amostra do seu conteúdo. Nesse aspecto, não vou
deixar vocês na mão. Selecionei, de “A duração do dia”, de
Adélia Prado, este poema, característico do seu estilo e da sua
temática, intitulado “Tão bom aqui”:
“Me
escondo no porão
para
melhor aproveitar o dia
e
seu plantel de cigarras.
Entrei
aqui pra rezar,
agradecer
a Deus este conforto gigante.
Meu
corpo velho descansa regalado,
tenho
sono e posso dormir,
tendo
comido e bebido sem pagar.
O
dia lá fora é quente,
a
água na bilha é fresca,
acredito
que sugestiono elétrons.
Eu
só quero saber do microcosmo,
o
de tanta realidade que nem há.
Na
partícula visível de poeira
em
onda invisível dança a luz.
Ao
cheiro de café minhas narinas vibram,
alguém
vai me chamar.
Responderei
amorosa,
refeita
de sono bom.
Fora
que alguém me ama,
eu
nada sei de mim”.
Gostaram?
Se vocês forem, de fato, meus cúmplices, não há porque não
gostar. E, se estiverem lendo estas descompromissadas reflexões, a
cumplicidade em questão é uma realidade entre nós. Esta se
manifesta com maior intensidade com nossos poetas preferidos, embora
possa ocorrer, também, com cronistas, contistas, romancistas e
novelistas. É o que ocorre comigo, por exemplo, em relação a Jorge
Luís Borges. Este meu “guru” faleceu, se não me falha a
memória, em 1984. Nunca houve, óbvio, nenhum contato pessoal entre
nós. Ele sequer tomou ciência, por qualquer meio que fosse, de que
eu existia. No entanto...
Tenho
inúmeros livros de Borges, quer traduzidos, quer no original, em
espanhol. Sempre que tenho notícia de alguma republicação de sua
obra, dou um jeito de adquiri-la. E “devoro”, sofregamente,
página por página, do que escreveu. Parece-me que suas mensagens
são pessoais, dirigidas
exclusivamente
para mim. Não são, é claro. Mas ajo como se fossem.
Aliás,
meu grande “guru” tem um poema em que explica esse fenômeno de
cumplicidade. Seu título? O mais óbvio possível: é “Ocúmplice”.
Descobri-o
em um site de Portugal e a tradução é do escritor português
Fernando Pinto do Amaral.
O
referido poema diz o seguinte:
“Crucificam-me
e eu tenho de ser a cruz e os pregos.
Estendem-me
a taça e eu tenho de ser a cicuta.
Enganam-me
e eu tenho de ser a mentira.
Incendeiam-me
e eu tenho de ser o inferno.
Tenho
de louvar e de agradecer cada instante do tempo.
O
meu alimento é todas as coisas.
O
peso exato do universo, a humilhação, o júbilo.
Tenho
de justificar o que me fere.
Não
importa a minha felicidade ou infelicidade.
Sou
o poeta”.
Como não gostar de um sujeito tão inteligente e sensível? Como não ser seu cúmplice, em suas aventuras literárias? Infelizmente, não tive o privilégio e nem a mais remota possibilidade de conhecê-lo pessoalmente. Como, também, jamais mantive qualquer tipo de contato pessoal com Adélia Prado. Com a poetisa mineira, porém, ainda há alguma esperança de algum encontro. Mas com Borges... Eu teria altos papos com ambos, caso os encontrasse, sobre a vida, os sentimentos, as amizades, o amor, a felicidade etc.etc.etc. E, sobretudo, sobre essa nossa paixão comum, que nos torna cúmplices desse “crime” inenarrável, que é o de bisbilhotar sentimentos e comportamentos alheios e de divulgá-los aos quatro ventos.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
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