quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Tuiuti, assunto requentado (ou quente?) - Mara Narciso


Tuiuti, assunto requentado (ou quente?)

* Por Mara Narciso

Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”
 
Frases colhidas no Facebook: “Escola hipócrita, é contra a reforma trabalhista, com destaque para as carteiras de trabalho destruídas, e não formalizou contratos de trabalho neste carnaval”. “Escola financiada por partido político e com carnavalesco militante, de visão unilateral”. “A mando de um partido, fez protesto setorizado, deixando de lado o PT, o ‘Petrolão’ e outros escândalos.” “Escola de Samba vendida, patrocinada pelo PT, deixou de fora os crimes do partido”. “A desonestidade intelectual chega ao carnaval. Para a Tuiuti a culpa é dos brasileiros, para a Beija-Flor, a culpa é dos corruptos”. Os blogs e redes sociais fervilham Tuiuti, escola que desfilou no Grupo Especial no Rio de Janeiro no dia 12 de fevereiro, e foi o assunto mais comentado no Twitter no Brasil e o segundo na imprensa internacional.
 
A esquerda se apropriou do samba enredo, enredo e desfile do Grêmio Recreativo Escola de Samba Paraíso do Tuiuti transformando-os em seu hino. As comunidades negras desentalaram os 130 anos de escravidão pós Lei Áurea em seu desfile-protesto. Contou a história desde a escravidão, até os dias atuais, com denúncia de golpe político, o que surpreendeu a Rede Globo, que, segundo alguns, foge da notícia.
 
Resultado da fusão da Escola de Samba Paraíso das Baianas e Unidos de Tuiuti, a agremiação existe desde 1954. No ano passado protagonizou um acidente na Avenida Marquês de Sapucaí, quando um carro alegórico atropelou e feriu 20 pessoas, prensando-as contra uma grade e matando uma jornalista. Segundo a família, ainda não recebeu indenização.
 
Para desmerecer a segunda colocada, que perdeu para a Beija-Flor de Nilópolis por um décimo, os blogueiros de orientação à direita, destacam os erros da escola de São Gonçalo, enquanto os de orientação à esquerda fazem a festa. A comissão de frente “Grito de Liberdade” recebeu o Estandarte de Ouro. Mostrou negros escravizados, com máscaras fechando a boca, apanhando do feitor, numa cena dramática (“Comissão de muita verdade”, diz seu coreógrafo Patrick Carvalho).
 
A letra fala:

E assim, quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra a bondade cruel”...

Enquanto o desfile mostra pessoas prisioneiras em sufocantes casas na favela, no serviço pesado dos canaviais e outras prisões. A escravidão persiste e se acentua agora, com a Reforma Trabalhista. O presidente Michel Temer é representado vampirizando a classe trabalhadora, coisa ignorada pelos comentaristas da Rede Globo. Devido à má repercussão, que os apoiadores do governo chamaram de fanatismo na leitura do desfile, teve de refazer seu discurso.
 
Quem bateu panela pelo impeachment de Dilma Rousseff, não gostou de se ver representado como “manifestoche”, dentro do Pato Amarelo da FIESP, e manipulado por imensas mãos, que seriam o Poder (Rede Globo), mas que representam a própria Globo, dizem os opositores da mídia tradicional.
 
O toque de gênio, falam os entendidos, do carnavalesco Jack Vasconcelos, tornou o enredo de leitura fácil. Trabalhou em cima do Samba Enredo, composto por Cláudio Russo, Moacyr Luz, Dona Zezé, Jurandir e Aníbal, e que está condenado à imortalidade, devido à força dos seus versos. “Não sou escravo de nenhum Senhor”, mostra a insatisfação das classes da base da pirâmide, que, no desfile teve sua voz pela própria liberdade.
 
Para amenizar o efeito da mensagem que fazia crítica ao racismo, à exclusão social e acusava o poder de golpe político, parlamentar e midiático, os simpatizantes do Governo Temer desmoralizam o emissor. Em resposta, um internauta retrucou: “não importa quem produz a mensagem, ela fala por si”. A visibilidade conseguida pela ex-pequena Escola de Samba Paraíso de Tuiuti mostrou a capacidade de superação dos seus componentes, levando-a para a mira dos holofotes. Dois dias depois, contrariando os índices alardeados, o General Walter Souza Braga Netto, nomeado por Michel Temer para comandar a Intervenção Federal no Estado do Rio de Janeiro falou que o suposto aumento da violência era resultado de efeito midiático. Especulava-se sobre uma represália do Governo à crítica da Tuiuti, mas quando a escola se reapresentou descaracterizada a dúvida se esvaneceu. A censura voltou.


* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”



Um comentário:

  1. Errata: A Paraíso de Tuiuti é de São Cristóvão, e não São Gonçalo como está denominada.

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