Livro reabilita o Marquês de
Sade
O
marquês de Sade, ou Donatien Alphonse François, celebrizado como
libertino, considerado um monstruoso psicopata e cujo nome foi usado
para batizar uma psicopatia, o sadismo, "seria considerado um
homem normal", caso vivesse nos dias de hoje. A tese é do
escritor tunisiano Serge Bramly, autor do romance "O terror na
alcova" (Editora Record), que gira em torno dos oito meses até
aqui obscuros na vida desse personagem, ao mesmo tempo trágico e
heroico, que desperta simultaneamente ira e piedade, por suas ideias
e pela forma com que foi tratado, respectivamente. Trata-se do tempo
em que permaneceu internado em Picpus, mistura de cárcere e de
estalagem, onde alguns nobres foram instalados, às custas do Estado,
à espera do momento de serem guilhotinados, no auge do Terror, em
1794, durante a Revolução Francesa.
Ao
cabo da leitura do livro de Bramly fica no ar a pergunta: "Quem
era mais desequilibrado, o marquês, cujo romance "Os cem dias
de Sodoma" choca ainda hoje, (quando os horrores se tornaram
banais), ou o regime que o puniu, que provocou na França um
genocídio como poucos já perpetrados (comparável, guardadas as
devidas proporções, ao Holocausto nazista, à carnificina do Khmer
Vermelho no Camboja nos anos 70 ou à recente limpeza étnica na
Bósnia)?". A história não tem sido justa com nenhum dos dois.
Enquanto Sade é tido até hoje como um monstro, ele que não tirou
vida alguma, a Revolução é citada como a fonte dos "Direitos
Humanos", ela que violou o mais sagrado deles: o à vida.
Serge
Bramly, em entrevista publicada há já bom tempo em "O Globo",
enfatiza que a "utilização do seu nome (o de Sade, para
batizar o sadismo) é um pouco exagerada". Assegura que "no
caso do termo sadomasoquista, ele seria muito mais 'maso' do que
'sado'. Enfatiza que "é importante ressaltar a diferença entre
o que ele viveu e o que escreveu. O que viveu foram práticas sexuais
relativamente banais. Já o que ele escreveu, isso sim, é sadismo.
Para ele, se você não é capaz de exprimir as ideias mais
monstruosas como dormir com a própria mãe, não é livre. A
verdadeira liberdade de pensamento só acontece quando destruímos
todas as barreiras. Nesse sentido, sua filosofia e sua moral são
libertárias". A tese pode ser discutível, mas é válida.
Em
suma, Sade permaneceu quase 46 anos de sua vida preso --- a primeira
das prisões ocorreu ainda no reinado do rei Luís XVI, em 1768,
acusado de haver flagelado uma mendiga e a última foi seu
internamento no asilo de loucos de Charenton, onde morreu aos 74 anos
de idade – exclusivamente por suas ideias. Nesse aspecto, pode ser
comparado ao escritor franco-indiano Salman Rushdie, autor dos
"Versículos Satânicos", punido pela "fathwa"
(sentença de morte islâmica) ditada pelo líder supremo dos xiitas,
o iraniano aiatolá Ruhollah Khomeini.
A
diferença é que os líderes da Revolução Francesa tinham o poder
de matar o marquês. Estranha-se que não o tenham feito, quando se
sabe que mandaram para a guilhotina artistas, filósofos e cientistas
notáveis, sem nenhuma vinculação com a política e a monarquia,
como foi o caso do químico Lavoisier. Quem o "protegia"
nos altos escalões? E por que? É um mistério que nunca foi
esclarecido. Bramly narra em seu livro, inclusive, que os
encarregados de escolher os que seriam guilhotinados estiveram em
Picpus para buscar Sade para execução. Seu nome era o nono da
lista. Viram-no, mas fizeram de conta que não estava ali. E no
relatório que tinham que apresentar aos seus superiores registraram,
simplesmente, que este não foi encontrado.
O
autor de "O terror na alcova" trabalhou no Brasil, como
fotógrafo de moda, entre 1971 e 1973. Sobre essa experiência,
confessa: "Naquela época, eu tinha interesse específico pelo
ritual da macumba, o transe nos terreiros do Rio. Eu era casado com
uma brasileira, com a qual tenho uma filha. Acabei fazendo um livro
sobre macumba. Acho que, na época, Sade no Brasil era uma resposta à
ditadura, um exemplo de liberdade". Embora seu livro se trate de
um romance, Serge Bramly garante que se manteve rigorosamente fiel
aos documentos referentes à vida do marquês e às suas ideias.
O
número de pessoas guilhotinadas a mando dos líderes da Revolução
Francesa, especialmente do temível Robespierre – chamado no livro
de Serge Bramly de "O Incorruptível" – é desconhecido
até os dias de hoje. A contagem das execuções sumárias, feitas
após simulacros de julgamentos, baseados em acusações vagas, sem
que os acusados tivessem respeitado seu sagrado direito de defesa,
parou quando chegou aos vinte mil. Quantas foram, de fato, as
vítimas? Cinquenta mil? Setenta mil? Cem mil? Mais? Menos? Ninguém
sabe. Talvez nunca se venha a saber.
Registros
da época especulam que a intenção dos sanguinários
revolucionários era a de executar dois milhões de franceses, para
através dessa sangria, "purificar os humores" da pátria.
Os revolucionários fizeram da guilhotina uma ferramenta "didática".
Pretendiam impor-se pelo medo. Quando as pessoas acostumaram-se às
execuções – o homem acostuma-se com tudo, até com o horror –
estas foram tornadas mais chocantes e copiosas. O terror tinha que
ser mantido a qualquer preço.
Robespierre
acabou sendo vítima da própria loucura. Também foi guilhotinado,
como muitos de seus desafetos ou a maioria inocente que morreu sem
culpa e sem haver cometido qualquer delito. Quem foi mais monstruoso:
Donatien, que expunha ideias repugnantes em seus livros, mas cujas
práticas seriam consideradas inocentes e até normais (posto que
exóticas e não convencionais) nos dias de hoje, ou o líder
revolucionário, que mandou tanta gente para o patíbulo?
Serge
Bramly, com base em documentos da época, faz o seguinte relato sobre
as execuções, em determinado trecho do livro "O terror na
alcova": "A maior parte daquele sangue escorre entre as
tábuas separadas da plataforma. Certa tarde, como as execuções
sucediam-se incessantemente e caíra uma tromba-d'água, o sangue
derramado, misturado à chuva, formou uma imensa poça aos pés do
cadafalso. O solo encharcado não absorvia mais nada e uma lama
vermelha espalhou-se por toda a Place de la Révolution. Atraiu
dezenas de cães vadios, que começaram a lamber o delicioso
líquido... O sangue deixou-os bêbados e provocou entre eles uma
briga feroz e generalizada".
E
Bramly prossegue na narrativa: "Aqueles demônios chafurdavam
nas poças, mordiam uns aos outros e fugiam, em meio a terríveis
latidos, por entre as pernas dos espectadores apavorados. Durante
muito tempo, foram vistos correndo pelas ruas, cobertos de um abjeto
lodo avermelhado. Conforme uma testemunha, encontraram no dia
seguinte marcas de sangue, do outro lado do Sena, inclusive na parte
alta da Rue de Bourgogne". Este é um caso típico em que a
realidade é muito mais chocante do que a mais delirante das ficções.
Mesmo que esta seja a relatada pelo autor dos "Cento e vinte
dias de Sodoma", "Justine" e "Filosofia de
Alcova".
Boa
leitura!
O
Editor.
O ser humano é assustador.
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