quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Araçazeiro, não! - Mara Narciso


Araçazeiro, não!


* Por Mara Narciso
 
Depois da curva da estrada tem um pé de araçá, sinto vir água nos olhos, toda vez que passo lá!” (Renato Teixeira)
 
Desde a tenra infância até a juventude, minha vida era Pentáurea Clube todo domingo. Em seu território não tinha Psidium cattleianum, araçá do Tupi: planta que tem olhos. Minha memória mais remota dessa goiabinha do cerrado vem da fazenda Aliança, do meu Tio Indalício Narciso, a 6 km da cidade. Lá a gente comia essa delícia. Era numa baixada de verde intenso, um descampado empastado, onde eu sumia andando a cavalo, e até caí de um deles, em cima do capim. Havia naquele lugar, quase um pomar de pés de araçá, um arbusto com fruto de cheiro e sabor sui generis, entre o azedo e leve adocicado, pequeno e verde claro, mesmo maduro. Quando ficava de vez, a gente comia, porque menino daquele tempo não rejeitava nada.
 
Ramificado desde a base, o arbusto lenhoso atrai animais e pode ser plantado em áreas degradadas, pois cresce rápido. Também ouvi falar que podem ser feitos suco e doce de araçá. No Mercado Central, de vez em quando avistávamos araçás, mas, Milena, a minha mãe, raramente os comprava, pois, frágeis, chegavam em mau estado.
 
Depois que eu me casei, Milena plantou em seu quintal um pé de araçá de qualidade, do tipo enxertado e criado em estufa, mais frágil que o curraleiro, com frutos maiores, mais doces e mais amarelos. Produzia bastante, e por ser molhado todo dia, dava frutos quase o ano inteiro. Os quatro netos mal deixavam os coitados amadurecer, comendo araçá de vez. Era entrar na casa e ir direto ao pé, pegar o que tivesse “inchado”. A avó não os reprimia, deixando-os livres para fazer o que quisessem desde que não desperdiçassem. Depois surgiram mais dois pés, originados da árvore mãe.


 
Há mais de um ano ganhei do meu primo Cláudio Narciso um pé de araçá de flora, um amor de planta que jamais será um araçazeiro. Eu o instalei no meu jardim, bem no centro do canteiro, num lugar de honra. Mimava a plantinha diariamente, molhando duas vezes ao dia, pois, devido ao grande calor que faz aqui, e a sensibilidade do pezinho, na parte da tarde ficava murcho. Com os cuidados, foi ficando fortinho, e após seis meses, começou sua primeira floração. Fernando, meu filho, dizia que eu estava gostando da plantinha mais do que de gente. Quando as flores caíram, surgiram os araçazinhos, sendo que dez vingaram, e desde então passei a namorar o crescimento deles. Vê-los desenvolver acariciava meu espírito materno e dedicado.
 
Num dia de dezembro chegaram os pintores. Pedi cuidado com pé de araçá. Um dos auxiliares jogou Thinner sobre o infeliz, que ficou com algumas folhas danificadas. Lavei folha a folha, delicadamente, com esponja e fiz nova recomendação. Outra vez apareceu uma escada junto dele. Só retiraram após meu pedido. Mas o pior aconteceu no dia em que pintaram o portão. A pistola, indiretamente, borrifou tinta sobre o pé de araçá e o estava matando. Fiquei chocada ao ver o coitado murcho, todo pintado de rosa pêssego. Implorei para que tentassem protegê-lo. Puseram uma lona preta e foi pior, devido ao calor. No final do dia estava tudo perdido. De nada adiantaria chorar. Lavei o enfermo em estado deplorável com bastante água e só restava me acostumar com o fato. Já enroladas desde o começo do desastre, com o passar dos dias, as folhas foram secando e quase todas caíram. Dos dez araçás, sobrou apenas um, que passei a cuidar como um ovo de indez. Tentei esquecer e esperar pelo efeito das chuvas, que neste ano vieram mais volumosas, depois de quase sete anos de seca.
 
A natureza vegetal respondeu logo e o pé de araçá brotou, cresceu e em dois meses deu flor. Estavam ali novos frutinhos e o araçá maior, único sobrevivente, após três meses de vida estava quase maduro. Pensei em protegê-lo dos passarinhos e numa manhã, quando fui vistoriá-lo, tinha sumido. Pensei que alguém o tivesse pegado, mas olhando para o chão, vi que estava sobre a grama. Peguei enternecida aquela joia, lavei, tirei foto, mostrei ao meu filho, e então, gulosamente, em duas bocadas sorvi o sabor daquela maravilha com gosto de infância. Tem sabor melhor do que aquele deixado numa boa curva do caminho? Agora é esperar pela segunda safra, que já começa a mostrar a sua carinha redonda, verde e com um olho na parte oposta ao caule.


* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”



Nenhum comentário:

Postar um comentário