Araçazeiro,
não!
* Por
Mara Narciso
“Depois
da curva da estrada tem um pé de araçá, sinto vir água nos olhos,
toda vez que passo lá!” (Renato Teixeira)
Desde
a tenra infância até a juventude, minha vida era Pentáurea Clube
todo domingo. Em seu território não tinha Psidium
cattleianum, araçá do Tupi: planta que tem olhos. Minha
memória mais remota dessa goiabinha do cerrado vem da fazenda
Aliança, do meu Tio Indalício Narciso, a 6 km da cidade. Lá a
gente comia essa delícia. Era numa baixada de verde intenso, um
descampado empastado, onde eu sumia andando a cavalo, e até caí de
um deles, em cima do capim. Havia naquele lugar, quase um pomar de
pés de araçá, um arbusto com fruto de cheiro e sabor sui generis,
entre o azedo e leve adocicado, pequeno e verde claro, mesmo maduro.
Quando ficava de vez, a gente comia, porque menino daquele tempo não
rejeitava nada.
Ramificado
desde a base, o arbusto lenhoso atrai animais e pode ser plantado em
áreas degradadas, pois cresce rápido. Também ouvi falar que podem
ser feitos suco e doce de araçá. No Mercado Central, de vez em
quando avistávamos araçás, mas, Milena, a minha mãe, raramente os
comprava, pois, frágeis, chegavam em
mau estado.
Depois
que eu me casei, Milena plantou em seu quintal um pé de araçá de
qualidade, do tipo enxertado e criado em estufa, mais frágil que o
curraleiro, com frutos maiores, mais doces e mais amarelos. Produzia
bastante, e por ser molhado todo dia, dava frutos quase o ano
inteiro. Os quatro netos mal deixavam os coitados amadurecer, comendo
araçá de vez. Era entrar na casa e ir direto ao pé, pegar o que
tivesse “inchado”. A avó não os reprimia, deixando-os livres
para fazer o que quisessem desde que não desperdiçassem. Depois
surgiram mais dois pés, originados da árvore mãe.
Há
mais de um ano ganhei do meu primo Cláudio Narciso um pé de araçá
de flora, um amor de planta que jamais será um araçazeiro. Eu o
instalei no meu jardim, bem no centro do canteiro, num lugar de
honra. Mimava a plantinha diariamente, molhando duas vezes ao dia,
pois, devido ao grande calor que faz aqui, e a sensibilidade do
pezinho, na parte da tarde ficava murcho. Com os cuidados, foi
ficando fortinho, e após seis meses, começou sua primeira floração.
Fernando, meu filho, dizia que eu estava gostando da plantinha mais
do que de gente. Quando as flores caíram, surgiram os araçazinhos,
sendo que dez vingaram, e desde então passei a namorar o crescimento
deles. Vê-los desenvolver acariciava meu espírito materno e
dedicado.
Num
dia de dezembro chegaram os pintores. Pedi cuidado com o pé
de araçá. Um dos auxiliares jogou Thinner sobre o infeliz,
que ficou com algumas folhas danificadas. Lavei folha a folha,
delicadamente, com esponja e fiz nova recomendação. Outra vez
apareceu uma escada junto dele. Só retiraram após meu pedido. Mas o
pior aconteceu no dia em que pintaram o portão. A pistola,
indiretamente, borrifou tinta sobre o pé de araçá e o estava
matando. Fiquei chocada ao ver o coitado murcho, todo pintado de rosa
pêssego. Implorei para que tentassem protegê-lo. Puseram uma lona
preta e foi pior, devido ao calor. No final do dia estava tudo
perdido. De nada adiantaria chorar. Lavei o enfermo em estado
deplorável com bastante água e só restava me acostumar com o fato.
Já enroladas desde o começo do desastre, com o passar dos dias, as
folhas foram secando e quase todas caíram. Dos dez araçás, sobrou
apenas um, que passei a cuidar como um ovo de indez. Tentei esquecer
e esperar pelo efeito das chuvas, que neste ano vieram mais
volumosas, depois de quase sete anos de seca.
A
natureza vegetal respondeu logo e o pé de araçá brotou, cresceu e
em dois meses deu flor. Estavam ali novos frutinhos e o araçá
maior, único sobrevivente, após três meses de vida estava quase
maduro. Pensei em protegê-lo dos passarinhos e numa manhã, quando
fui vistoriá-lo, tinha sumido. Pensei que alguém o tivesse pegado,
mas olhando para o chão, vi que estava sobre a grama. Peguei
enternecida aquela joia, lavei, tirei foto, mostrei ao meu filho, e
então, gulosamente, em duas bocadas sorvi o sabor daquela maravilha
com gosto de infância. Tem sabor melhor do que aquele deixado numa
boa curva do caminho? Agora é esperar pela segunda safra, que já
começa a mostrar a sua carinha redonda, verde e com um olho na parte
oposta ao caule.
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
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