sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Trinta mil - Viegas Fernandes da Costa


Trinta mil

* Por Viegas Fernandes da Costa

Fabrício vendia jornais sob o semáforo. Nunca calculou o peso do fardo que carregava sobre o braço esquerdo nas manhãs de sábado. Tinha dez anos, mas precisava trabalhar. Enquanto Fabrício vendia jornais, alguns dos nossos amigos jogavam bola na rua ou assistiam aos desenhos animados na televisão.

Ocorreu-me recordar de Fabrício, mas havia também a legião dos meninos engraxates. Caixa de madeira às costas, a roupa suja e esfarrapada. Você lembra dos meninos engraxates? Andavam em pequenos grupos, confundidos com trombadinhas. Trabalhadores sem futuro. Quantos daqueles “venceram na vida”?

Um velho exaurido vende balas no cruzamento. É verão, o calor do sol reverbera no asfalto. O pacotinho custa um Real. Um Real! Quantos pacotes para um almoço decente? O velho tem as costas curvadas mas procura manter a dignidade no cuidado com sua roupa. Botões da camisa surrada fechados, calça limpa, sapatos pretos. Madame compra um pacote como quem dá esmola. O velho trabalha, mas do outro lado dos para-brisas motoristas veem um pedinte. Alguns sentem pena; outros, indiferença.

No programa de auditório o presidente da República fala em revisar a previdência social. Topa tudo por dinheiro, o homem! Para o povo, tenta ser claro: “se eu ganho trinta mil, guardo quinhentos reais por mês e faço uma previdência privada”.

TRINTA MIL POR MÊS!
 
Presidentes da República deveriam habitar a Terra. “Alô, alô, marciano / A crise tá virando zona / Cada um por si todo mundo na lona”; de repente ouço Elis Regina cantando de algum lugar.

Talvez o velho nunca consiga vender trinta mil pacotes de bala. Provável que não. Mas o Brasil está melhorando, pelo menos no uso dos eufemismos. Até o IBGE caiu na onda. Agora pesquisa taxa de desocupação ao invés de desemprego. O velho que vende bala no cruzamento, por exemplo, passou à condição de microempreendedor individual. Está ocupado, tem renda, milagre econômico dando as caras.

Por alguns anos praticamente deixamos de ver velhos vendendo balas sob os semáforos, meninos engraxates e os filhos do Fabrício puderam estudar porque a política social exigia frequência na escola para pagar a bolsa à família. Mas isto foi antes do microempreendedorismo amplo e irrestrito que passou a imperar na terra das saúvas e dos haemagogus.

Agora, microempreendedores proliferam nos cruzamentos, mas o sinal está fechado. Uns vendem panos de louça, outros doces ou água, alguns até pequenos eletrônicos.

E há aqueles que apenas estendem a mão vazia.


* Escritor e historiador.

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