Sujeito
Zero (18)
* Por
Sergio Vilas Boas
Um
sujeito pode ser singular na vida e na morte, na saúde ou na
doença, no conforto ou na tragédia. Pessoas que nunca se sentem bem
– vejam o caso de Alma – existem e subsistem. Pessoas que não
fazem parte do tal grupo – vejam Seu Edmundo – simplesmente
mantêm o motor da vida em ponto morto.
Como
a pequena recém-nascida batizada Alma, deitada no berço sob os
olhos de Inês e Seu Edmundo, se tornou menina, adulta, bióloga e
militante humanista de uma ONG internacional que acaba de ser
interditada pela polícia? Como permaneceu a mesma tornando-se
diferente? É possível que tenha permanecido a mesma depois da morte
do pai, onde quer que ambos estejam neste momento? Claro que sim.
Sozinha
no quarto do Whaler’s, ela aprendia a adaptar os acontecimentos
presentes a um passado distante, a conectar duas realidades
conflitantemente distintas. Como os “patolinos” (Masked-Ducks)
que migraram de Mystic para o Sul no começo daquele inverno
rigoroso, ela também pretendeu recuperar seu ninho – infância,
pátria, bairro, gente, caules, raízes e galhos – tudo isso
através de mim, olhem só, que coisa.
Nunca
exerceu a profissão de bióloga, mas sabe que ter de conviver
intimamente com a ambigüidade e a complexidade, a incoerência e o
caos, é uma vantagem adaptativa. Um sujeito que pensa de modo linear
(em um mundo tão debilitante, tão binário como o de hoje) não é
exatamente um perdedor. O que falta ao pai de Alma é oxigênio,
elemento vital que, aliás, falta a nós todos.
Por
isso ela exigiu tudo o que podia de seu laptop aquela noite. A
essa altura, já me fica evidente que o conteúdo de Sujeito Zero
vinha sendo composto aleatoriamente há anos. Primeiro porque ela não
teria tempo de, em uma única noite, amalgamar tantas notas diversas
e desconexas. Segundo que há no arquivo reflexões e lembranças que
indicam um trabalho prolongado de investigação interior.
Os
rios do tempo levam o mundo inteiro em seu leito, querida, todas as
espécies e cada sujeito. Ao tentar focar o pai – embora às vezes
demore a localizá-lo, pois ele insiste em permanecer à margem da
moldura –, Alma era arrastada para uma correnteza revolta, sem
galhos às margens para se agarrar. Remava, remava, mas o bote girava
em espiral. O que sobrava era a sua austeridade hibernal.
Um
torrão de neve bate contra o vidro da janela e quebra o silêncio
ulterior no quarto do Whaler’s Inn.
***
Sou
um ser objetivo, racional, é isto. Não deixo que você, leitor, se
torne meu íntimo. Cada qual com seu desvio. Mas há chamados que não
obtêm resposta – por recusa, desatenção, aprisionamento a
rotinas, desgostos, ressentimentos, sobrecargas. Um sujeito sabe como
é fabricado um relógio mas outro só está habilitado a dizer as
horas olhando os ponteiros. Assim é.
O
ideal democrático do indivíduo autodeterminado, a invenção da
máquina movida por um motor e o desenvolvimento da ciência
contrastam com o que pensamos poder chamar de “estado de covardia”.
Então, como assumir a responsabilidade por nossos próprios padrões
e juízos, sabendo de nossas imperfeições e limitações?
A
saída está em distinguir a verdade. O que não significa somente,
ou principalmente, fatos científicos. Há os fatos apenas verídicos.
Se recapitulássemos as últimas dez questões que nos perturbaram a
vida – aquelas sobre as quais tivemos de ponderar se era verdadeiro
ou não o que acreditávamos – perceberíamos que poucas se
relacionavam com assuntos passíveis de comprovação científica.
Como
se posicionar diante deste ou daquele tema, se estamos ou não
apaixonados, o que responder à criança catarrenta que nos pede
trocados nos semáforos, como reagir a agressões de qualquer
calibre, por que comprar um presente para alguém que estimamos, por
que se juntar a esta e não àquela pessoa, et cetera.
São
questões às vezes com aparência de questiúnculas, mas que nos
preocupam de dia e à noite, e até mesmo em sonhos. Garanto que esse
tipo de dúvida não esteve guardado no compartimento “Convicções
a Adquirir” do cérebro de Seu Edmundo. É possível um sujeito não
ser fecundado pela “verdade não-científica”, aquela originada
dentro do íntimo, que diz respeito apenas a nós mesmos.
Certificar-se
de que a vida não está se passando inutilmente é tarefa
gigantesca, uma aventura empírica, tresloucada e dolorosa também.
Grandes demonstrações científicas – como a Terra ser redonda e
girar em torno do Sol, a Teoria da Relatividade, a Mecânica
Quântica, a descoberta da estrutura do DNA – ilustram a coragem
necessária para se fazer história, mudar os rumos. Científica ou
íntima, a verdade não decorre da covardia.
Crenças
viscerais arrogam Alma. Em Seattle, ela e os seus – Wapson Vogler
na linha de frente – incitaram os mais jovens a atirarem pedras
contra policiais; empunharam cartazes antiglobalização no encontro
da Organização Mundial de Comércio; em Praga, comandaram gritos de
guerra ao FMI e ao Banco Mundial; em Washington, esfregaram tortas de
chantilly nas caras-de-paus dos lobbistas da Associação
Internacional dos Fabricantes de Armas.
Em
Belém, observados pela câmera da CNN, deitaram-se no chão para
impedir a passagem de caminhões carregados com madeira extraída
ilegalmente; comandaram via internet uma operação que rechaçou do
Porto de Santos navios carregados com milho transgênico; em Bangcoc,
queimaram em praça pública mil pares de tênis produzidos com
mão-de-obra infantil.
As
constituições, principalmente em países pobres, só são
consultadas em impasses. Não são um “contrato social” derivado
das idéias de Jean-Jacques Rousseau. Faço coro à voz da Alma: a
maioria dos julgamentos polêmicos tem tido desfechos mais ou menos
previsíveis. Lamento, mas não existe consciência sem ética.
Se
o caráter hoje global dos seres e das coisas é o que determina o
progresso, então os números também deveriam ser globais. Os
números, claro, os números. Refiro-me a estatísticas favoráveis
(e preciso dizer para quem?) sobre calorias ingeridas, mortalidade
infantil, analfabetismo, distribuição de renda, trabalho escravo...
Pergunto,
na minha ingenuidade: melhoraram os índices de poluição
atmosférica e das águas no Globo? Quantos processos judiciais por
crime de corrupção têm (ou não têm) sido decentemente julgados?
A fome e o desemprego diminuíram? Queremos nada menos que os mínimos
estabelecidos nas legislações, e legislações onde não as houver.
Neste
momento, penso que os anos sessenta não saíram nem de Wapson nem de
Alma. Eles me parecem dinossauros comendo arbustos inadvertidamente.
Mas, antes de tudo, me pergunto o seguinte, pois esta maçaroca nada
mais é do que um breviário de perguntas feitas há mais de meio
século: por que esta incômoda sensação de que estamos
retrocedendo?
Meu
cronômetro é que parece desligado, na verdade. As desigualdades
socioambientais resistem à tua, à nossa vontade. De fato, jamais
conheci um só indivíduo que dissesse, publicamente, “sou injusto
e me orgulho disso” ou “não me importo com isso”. No entanto,
as carências continuam cada vez mais difusas, e não há modo de
fazer um humano caber inteiro na gaveta única da utopia.
Sei
que estou sendo frio e desagradável. Racionalista e tolo.
Discurseiro. Sem graça. Aborrecido. O contrário de Alma, ao que
parece.
*
Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo
Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br);
vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário
(ABJL). Autor de “Os
Estrangeiros do Trem N”
(1997), “Biografias
& Biógrafos”
(2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
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