domingo, 25 de fevereiro de 2018

Sujeito Zero (18) - Sérgio Vilas Boas




Sujeito Zero (18)


* Por Sergio Vilas Boas



Um sujeito pode ser singular na vida e na morte, na saúde ou na doença, no conforto ou na tragédia. Pessoas que nunca se sentem bem – vejam o caso de Alma – existem e subsistem. Pessoas que não fazem parte do tal grupo – vejam Seu Edmundo – simplesmente mantêm o motor da vida em ponto morto.

Como a pequena recém-nascida batizada Alma, deitada no berço sob os olhos de Inês e Seu Edmundo, se tornou menina, adulta, bióloga e militante humanista de uma ONG internacional que acaba de ser interditada pela polícia? Como permaneceu a mesma tornando-se diferente? É possível que tenha permanecido a mesma depois da morte do pai, onde quer que ambos estejam neste momento? Claro que sim.

Sozinha no quarto do Whaler’s, ela aprendia a adaptar os acontecimentos presentes a um passado distante, a conectar duas realidades conflitantemente distintas. Como os “patolinos” (Masked-Ducks) que migraram de Mystic para o Sul no começo daquele inverno rigoroso, ela também pretendeu recuperar seu ninho – infância, pátria, bairro, gente, caules, raízes e galhos – tudo isso através de mim, olhem só, que coisa.
Nunca exerceu a profissão de bióloga, mas sabe que ter de conviver intimamente com a ambigüidade e a complexidade, a incoerência e o caos, é uma vantagem adaptativa. Um sujeito que pensa de modo linear (em um mundo tão debilitante, tão binário como o de hoje) não é exatamente um perdedor. O que falta ao pai de Alma é oxigênio, elemento vital que, aliás, falta a nós todos.

Por isso ela exigiu tudo o que podia de seu laptop aquela noite. A essa altura, já me fica evidente que o conteúdo de Sujeito Zero vinha sendo composto aleatoriamente há anos. Primeiro porque ela não teria tempo de, em uma única noite, amalgamar tantas notas diversas e desconexas. Segundo que há no arquivo reflexões e lembranças que indicam um trabalho prolongado de investigação interior.

Os rios do tempo levam o mundo inteiro em seu leito, querida, todas as espécies e cada sujeito. Ao tentar focar o pai – embora às vezes demore a localizá-lo, pois ele insiste em permanecer à margem da moldura –, Alma era arrastada para uma correnteza revolta, sem galhos às margens para se agarrar. Remava, remava, mas o bote girava em espiral. O que sobrava era a sua austeridade hibernal.

Um torrão de neve bate contra o vidro da janela e quebra o silêncio ulterior no quarto do Whaler’s Inn.

***

Sou um ser objetivo, racional, é isto. Não deixo que você, leitor, se torne meu íntimo. Cada qual com seu desvio. Mas há chamados que não obtêm resposta – por recusa, desatenção, aprisionamento a rotinas, desgostos, ressentimentos, sobrecargas. Um sujeito sabe como é fabricado um relógio mas outro só está habilitado a dizer as horas olhando os ponteiros. Assim é.

O ideal democrático do indivíduo autodeterminado, a invenção da máquina movida por um motor e o desenvolvimento da ciência contrastam com o que pensamos poder chamar de “estado de covardia”. Então, como assumir a responsabilidade por nossos próprios padrões e juízos, sabendo de nossas imperfeições e limitações?

A saída está em distinguir a verdade. O que não significa somente, ou principalmente, fatos científicos. Há os fatos apenas verídicos. Se recapitulássemos as últimas dez questões que nos perturbaram a vida – aquelas sobre as quais tivemos de ponderar se era verdadeiro ou não o que acreditávamos – perceberíamos que poucas se relacionavam com assuntos passíveis de comprovação científica.

Como se posicionar diante deste ou daquele tema, se estamos ou não apaixonados, o que responder à criança catarrenta que nos pede trocados nos semáforos, como reagir a agressões de qualquer calibre, por que comprar um presente para alguém que estimamos, por que se juntar a esta e não àquela pessoa, et cetera.

São questões às vezes com aparência de questiúnculas, mas que nos preocupam de dia e à noite, e até mesmo em sonhos. Garanto que esse tipo de dúvida não esteve guardado no compartimento “Convicções a Adquirir” do cérebro de Seu Edmundo. É possível um sujeito não ser fecundado pela “verdade não-científica”, aquela originada dentro do íntimo, que diz respeito apenas a nós mesmos.

Certificar-se de que a vida não está se passando inutilmente é tarefa gigantesca, uma aventura empírica, tresloucada e dolorosa também. Grandes demonstrações científicas – como a Terra ser redonda e girar em torno do Sol, a Teoria da Relatividade, a Mecânica Quântica, a descoberta da estrutura do DNA – ilustram a coragem necessária para se fazer história, mudar os rumos. Científica ou íntima, a verdade não decorre da covardia.

Crenças viscerais arrogam Alma. Em Seattle, ela e os seus – Wapson Vogler na linha de frente – incitaram os mais jovens a atirarem pedras contra policiais; empunharam cartazes antiglobalização no encontro da Organização Mundial de Comércio; em Praga, comandaram gritos de guerra ao FMI e ao Banco Mundial; em Washington, esfregaram tortas de chantilly nas caras-de-paus dos lobbistas da Associação Internacional dos Fabricantes de Armas.

Em Belém, observados pela câmera da CNN, deitaram-se no chão para impedir a passagem de caminhões carregados com madeira extraída ilegalmente; comandaram via internet uma operação que rechaçou do Porto de Santos navios carregados com milho transgênico; em Bangcoc, queimaram em praça pública mil pares de tênis produzidos com mão-de-obra infantil.

As constituições, principalmente em países pobres, só são consultadas em impasses. Não são um “contrato social” derivado das idéias de Jean-Jacques Rousseau. Faço coro à voz da Alma: a maioria dos julgamentos polêmicos tem tido desfechos mais ou menos previsíveis. Lamento, mas não existe consciência sem ética.

Se o caráter hoje global dos seres e das coisas é o que determina o progresso, então os números também deveriam ser globais. Os números, claro, os números. Refiro-me a estatísticas favoráveis (e preciso dizer para quem?) sobre calorias ingeridas, mortalidade infantil, analfabetismo, distribuição de renda, trabalho escravo...

Pergunto, na minha ingenuidade: melhoraram os índices de poluição atmosférica e das águas no Globo? Quantos processos judiciais por crime de corrupção têm (ou não têm) sido decentemente julgados? A fome e o desemprego diminuíram? Queremos nada menos que os mínimos estabelecidos nas legislações, e legislações onde não as houver.

Neste momento, penso que os anos sessenta não saíram nem de Wapson nem de Alma. Eles me parecem dinossauros comendo arbustos inadvertidamente. Mas, antes de tudo, me pergunto o seguinte, pois esta maçaroca nada mais é do que um breviário de perguntas feitas há mais de meio século: por que esta incômoda sensação de que estamos retrocedendo?

Meu cronômetro é que parece desligado, na verdade. As desigualdades socioambientais resistem à tua, à nossa vontade. De fato, jamais conheci um só indivíduo que dissesse, publicamente, “sou injusto e me orgulho disso” ou “não me importo com isso”. No entanto, as carências continuam cada vez mais difusas, e não há modo de fazer um humano caber inteiro na gaveta única da utopia.

Sei que estou sendo frio e desagradável. Racionalista e tolo. Discurseiro. Sem graça. Aborrecido. O contrário de Alma, ao que parece.




* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de Os Estrangeiros do Trem N (1997), Biografias & Biógrafos (2002) e Perfis (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.




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