Tristeza
* Por Marcelino Lima
A maior parte do tempo, as
duas irmãs, mais a viúva. Sozinhas, velando o morto. De vez em
quando, um vizinho. Um bêbado, lá da rua, madrugada comendo o sono,
querendo saber: quem esticou as canelas, era bacana, ou pé rapado?
Um cão sarnento. Moscas nos crisântemos. Parentes um pé lá, outro
cá. Os distantes não chegariam a tempo, mesmo, então, para que
pegar estrada? Sobrinhos, se nem os dois filhos?
A mãe, de volta do cemitério,
molhada pela garoa fina que enregelava até a alma. Pega o moço a
bulir gavetas. Quer saber cadê o "bobo" do falecido, não
acredito, mainhizinha, cê enterrou com ele se daria boa grana no
antiquário?! Mas ô velha, diz ai, vai: o pai era mesmo duro ou
deixou algum em seu nome, hein? hein? uma conta secreta, abre o jogo
aí, vai. Para não perder a viagem carregou umas três camisas, dois
cintos, gravatas, um risca de giz – que, vá lá, apesar da falta
dum botão na frente, já meio caidão, elegante, de bom corte –,
pares de sapatos maiores dois números — mãe daria tudo aos
pobres, desperdício, meu, ora, se não servissem, aos amigos menos
remediados. O carro na garagem: tchau, rádio gravador, e que pai
mais besta de antiquado, nem um cd player, oh, miserê, cara!
Ao telefone informa à
"menina". Missa de sétimo dia? Xi, mamacita, bem na hora,
e no dia da festa de despedida de solteiro do melhor amigo de
academia do Xandão? Nem pensar, dona Tereza, maior balada na Lagoa
Preta, perco, não... E tem mais, prestenção, please, mãmã: o
papi mor-r-eu, mor-ti-nho da sil-va, já era, tá? Vê se desamua,
não fica ai curtindo viuvez! Oh, um toque esperto: a senhora ainda é
broto, cai na vida, tem tiozinho enxuto na área dando sopa, uns até
bem remediados, me entende, sempre tem um cara legal, sei lá, até
mesmo um boy, quem é que vai ligar, vai nessa, mãe, bola pra
frente, um beijo, clique, pam, pam, pam, pam...
Dias passando. Iguais. Piores
momentos a solidão da noite, sempre longa. Tevê amanhece ligada,
luz do banheiro torna acesa. Únicos consolos: foto na cabeceira,
visita de algumas amigas, gente piedosa de igrejas. E Apache, a gata,
homenagem aos índios que seo Ribeiro vira num bang-bang – ele
sempre torcera contra John Wayne e pelos peles-vermelhas, aquela
mania de tomar partido pelos mais fracos, traço de caráter,
humildade que de porra nenhuma serviu, até rendeu de mote, quando,
já desiludido da vida pública, puxaram o tapete dele na convenção,
contas feitas, votos a favor suficientes, tudo na ponta do lápis, e
o desafeto é quem sai candidato pelo partido, tanto altruísmo nem
mesmo levou gente ao próprio mortório. É, e a bichana, miarosa.
Fazendo fora do tanquinho de areia, melancolindo-se, cada vez mais,
olhar tristonho afundado na poltroninha da varanda onde não mais
encontra aconchego de colo e carinho das longas mãos cofiando o
pelame. Há três dias nada de leite, sequer polenta reforçada por
caldo de frango – que antes devorava, sobretudo feita pelo dono –,
desperta a fome...
-
Jornalista
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