Um enigma chamado homem
* Por
Dom Lucas Moreira Neves
Um poeta religioso,
que bem poderia ser o próprio rei Davi, introduziu em um salmo sobre a
majestade de Deus uma pergunta inesperada: "Que é o homem para dele te
lembrares? E um filho de Adão para vires visitá-lo?" A pergunta trazia no
fundo um confronto entre a magnitude de Deus e a pequenez do homem. Mas à sua
própria indagação, o salmista é obrigado a responder com uma verdade igualmente
inesperada: "Tu o fizeste pouco menos do que um deus, coroando-o de glória
e de beleza; sob seus pés tudo colocaste para que domine as obras de suas
mãos"(salmo 8,6-9; Heb. 2,6).
Bem antes do inspirado
poeta de Israel, muitos outros autores, religiosos ou não, haviam feito a
pergunta que muitíssimos outros vêm repetindo depois dele: "Que é o
homem?" (Eu imagino freqüentemente uma outra esfinge desafiando Édipo em
todas as encruzilhadas do mundo e da história e dizendo não
"decifra-me", mas "decifra-te ou eu te devoro!".)
A interrogação pode
ter uma dimensão meramente biológica e significar: quais são os componentes
fisiológicos do homem? Qual a sua estrutura física? De que ingredientes é feita
sua corporeidade? Mas pode ter, além disso, uma dimensão metafísica e querer
perguntar: que existe no homem além da corporeidade? Que faculdades interiores?
Que aspirações? Que destino? Pode ter uma dimensão psicológica: quais os
sentimentos profundos do homem? Que impulsos o movem? Que freios o paralisam? E
pode ter, enfim, uma dimensão espiritual e religiosa: que é Deus para o homem e
como se vê ele diante de Deus? Como se comporta? Que atitudes toma?
Um grande pensador,
inexcedível indagador sobre o homem, Blaise Pascal, deparou-se com a mesma
pergunta: "Que é o homem", e viu nela o mesmo confronto entre o
infinito de Deus e o finito humano. A resposta que conseguiu balbuciar foi
"O homem é um caniço – mas é um caniço que pensa." Na fragilidade do
caniço unida à faculdade e capacidade de pensar, Pascal identificou a
originalidade e singularidade do homem.
Nem todos, porém, ao longo
da história, têm respondido como Pascal. Desde que, no apogeu da filosofia
helênica, se tenta dar à pergunta sobre o homem uma resposta raciocinada, os
pensadores vacilaram, perplexos, entre uma visão do homem puramente idealista,
espiritualista e outra puramente fisiológica e materialista. Poucos como
Agostinho, nas pegadas de Platão, e Tomás de Aquino, na esteira de Aristóteles,
viram o homem como um composto substancial de alma (feita para conhecer a
Verdade e amar o Bem) e corporeidade, de um princípio espiritual subsistente e
de um princípio material profundamente unidos. De maneira diversa mas na mesma
direção, foram e são numerosos os que dão à pergunta uma resposta
fundamentalmente materialista, vendo no homem um ser meramente físico e corporal
que desaparece completamente com a decomposição da matéria ou um ser igual ao
animal, diferente dele somente em grau, sob o aspecto físico. Essa resposta
materialista está sempre de moda e reponta de um modo ou de outro nas
antropologias de Hume e de Feuerbach, de Marx e de Lênin, de Freud, de
Lévy-Strauss, de Foucault.
A resposta convincente
não pode deixar de considerar algumas dimensões essenciais do homem. Se a
resposta oferecida pela antropologia cristã é a única em condições de
satisfazer plenamente, é porque ela integra harmoniosamente todas essas
dimensões. Além de ver no homem o composto de alma e corpo, e em conseqüência
disso, a concepção cristã do homem o vê semelhante mas ao mesmo tempo
profundamente dessemelhante com relação ao animal: semelhante nas necessidades
vitais e na vida sensitiva, dessemelhante nas suas capacidades espirituais.
Capacidade de pensar,
apreendendo intelectualmente a realidade, julgando-a e raciocinando sobre ela e
a partir dela. Capacidade de falar, exprimindo, com sua linguagem simbólica, o
próprio pensamento. Capacidade de querer, isto é, de tender ao que há de bom
naquilo que pensou; tender não pela mera força do instinto, por determinismo,
mas com liberdade e espontaneidade. Capacidade de amar, não por simples atração
mas por amor-dom, oblação, entrega. Capacidade de olhar as coisas, as pessoas,
a história com senso moral. Capacidade de conhecer e contemplar, de adorar a
Deus - de tender para Deus como para seu destino absoluto.
Uma diferença básica
entre o homem e os outros seres, mesmo os animais superiores, é a consciência.
Ele é capaz de refletir sobre si próprio, sobre sua história, sua vida. Capaz
de saber o que sucede com ele próprio. Ninguém o exprimiu melhor do que Blaise
Pascal: "O homem vive, sofre e morre e sabe que o faz, tem consciência de
viver, sofrer e morrer. Esta autoconsciência é a marca do homem."
"Tu o fizeste
pouco menos do que um deus." A palavra do salmista revela o plano de Deus
sobre o homem. Este é a única criatura que o Criador quer por si mesma e não
como meio. Por isso só essa criatura pode ter também o nome de filho ou filha
de Deus. Por isso também ao homem foi dado dominar as outras criaturas e
servir-se delas para o seu bem-estar.
Para falar da criação
do homem, Teilhard de Chardin recorreu ao neologismo hominização. Não é este o
tempo e lugar para debater este conceito e seu conteúdo. Só será justa a
hominização se ela admitir um salto de qualidade: o instante em que, pela força
criadora de Deus, nasceu o homem pensante, capaz de falar, de amar, de rezar e
adorar, de ter consciência pessoal.
(O homem descartável e
outras crônicas, 1995.)
*
Cardeal e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.


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