domingo, 9 de agosto de 2015

Um enigma chamado homem

* Por Dom Lucas Moreira Neves


Um poeta religioso, que bem poderia ser o próprio rei Davi, introduziu em um salmo sobre a majestade de Deus uma pergunta inesperada: "Que é o homem para dele te lembrares? E um filho de Adão para vires visitá-lo?" A pergunta trazia no fundo um confronto entre a magnitude de Deus e a pequenez do homem. Mas à sua própria indagação, o salmista é obrigado a responder com uma verdade igualmente inesperada: "Tu o fizeste pouco menos do que um deus, coroando-o de glória e de beleza; sob seus pés tudo colocaste para que domine as obras de suas mãos"(salmo 8,6-9; Heb. 2,6).

Bem antes do inspirado poeta de Israel, muitos outros autores, religiosos ou não, haviam feito a pergunta que muitíssimos outros vêm repetindo depois dele: "Que é o homem?" (Eu imagino freqüentemente uma outra esfinge desafiando Édipo em todas as encruzilhadas do mundo e da história e dizendo não "decifra-me", mas "decifra-te ou eu te devoro!".)

A interrogação pode ter uma dimensão meramente biológica e significar: quais são os componentes fisiológicos do homem? Qual a sua estrutura física? De que ingredientes é feita sua corporeidade? Mas pode ter, além disso, uma dimensão metafísica e querer perguntar: que existe no homem além da corporeidade? Que faculdades interiores? Que aspirações? Que destino? Pode ter uma dimensão psicológica: quais os sentimentos profundos do homem? Que impulsos o movem? Que freios o paralisam? E pode ter, enfim, uma dimensão espiritual e religiosa: que é Deus para o homem e como se vê ele diante de Deus? Como se comporta? Que atitudes toma?

Um grande pensador, inexcedível indagador sobre o homem, Blaise Pascal, deparou-se com a mesma pergunta: "Que é o homem", e viu nela o mesmo confronto entre o infinito de Deus e o finito humano. A resposta que conseguiu balbuciar foi "O homem é um caniço – mas é um caniço que pensa." Na fragilidade do caniço unida à faculdade e capacidade de pensar, Pascal identificou a originalidade e singularidade do homem.

Nem todos, porém, ao longo da história, têm respondido como Pascal. Desde que, no apogeu da filosofia helênica, se tenta dar à pergunta sobre o homem uma resposta raciocinada, os pensadores vacilaram, perplexos, entre uma visão do homem puramente idealista, espiritualista e outra puramente fisiológica e materialista. Poucos como Agostinho, nas pegadas de Platão, e Tomás de Aquino, na esteira de Aristóteles, viram o homem como um composto substancial de alma (feita para conhecer a Verdade e amar o Bem) e corporeidade, de um princípio espiritual subsistente e de um princípio material profundamente unidos. De maneira diversa mas na mesma direção, foram e são numerosos os que dão à pergunta uma resposta fundamentalmente materialista, vendo no homem um ser meramente físico e corporal que desaparece completamente com a decomposição da matéria ou um ser igual ao animal, diferente dele somente em grau, sob o aspecto físico. Essa resposta materialista está sempre de moda e reponta de um modo ou de outro nas antropologias de Hume e de Feuerbach, de Marx e de Lênin, de Freud, de Lévy-Strauss, de Foucault.

A resposta convincente não pode deixar de considerar algumas dimensões essenciais do homem. Se a resposta oferecida pela antropologia cristã é a única em condições de satisfazer plenamente, é porque ela integra harmoniosamente todas essas dimensões. Além de ver no homem o composto de alma e corpo, e em conseqüência disso, a concepção cristã do homem o vê semelhante mas ao mesmo tempo profundamente dessemelhante com relação ao animal: semelhante nas necessidades vitais e na vida sensitiva, dessemelhante nas suas capacidades espirituais.

Capacidade de pensar, apreendendo intelectualmente a realidade, julgando-a e raciocinando sobre ela e a partir dela. Capacidade de falar, exprimindo, com sua linguagem simbólica, o próprio pensamento. Capacidade de querer, isto é, de tender ao que há de bom naquilo que pensou; tender não pela mera força do instinto, por determinismo, mas com liberdade e espontaneidade. Capacidade de amar, não por simples atração mas por amor-dom, oblação, entrega. Capacidade de olhar as coisas, as pessoas, a história com senso moral. Capacidade de conhecer e contemplar, de adorar a Deus - de tender para Deus como para seu destino absoluto.

Uma diferença básica entre o homem e os outros seres, mesmo os animais superiores, é a consciência. Ele é capaz de refletir sobre si próprio, sobre sua história, sua vida. Capaz de saber o que sucede com ele próprio. Ninguém o exprimiu melhor do que Blaise Pascal: "O homem vive, sofre e morre e sabe que o faz, tem consciência de viver, sofrer e morrer. Esta autoconsciência é a marca do homem."

"Tu o fizeste pouco menos do que um deus." A palavra do salmista revela o plano de Deus sobre o homem. Este é a única criatura que o Criador quer por si mesma e não como meio. Por isso só essa criatura pode ter também o nome de filho ou filha de Deus. Por isso também ao homem foi dado dominar as outras criaturas e servir-se delas para o seu bem-estar.

Para falar da criação do homem, Teilhard de Chardin recorreu ao neologismo hominização. Não é este o tempo e lugar para debater este conceito e seu conteúdo. Só será justa a hominização se ela admitir um salto de qualidade: o instante em que, pela força criadora de Deus, nasceu o homem pensante, capaz de falar, de amar, de rezar e adorar, de ter consciência pessoal.

(O homem descartável e outras crônicas, 1995.)


* Cardeal e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.

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