segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Um caso de amor – Parte II


* Por Pedro J. Bondaczuk


(CONTINUAÇÃO)

IV

Valquíria, no frescor dos seus vinte e dois anos, recém completados, era de uma beleza estonteante, dessas de virar a cabeça de qualquer homem. Embora um tanto pequenina, nos seus 1,60 m, era toda proporcional, sem ter coisa alguma a mais ou a menos em sua estrutura. Tinha cabelos castanhos, brilhantes, sedosos, saudáveis e cheirosos que lhe iam até os ombros. Seu rosto redondo era enfeitado por dois olhos brilhantes, profundos, inteligentes e sonhadores.

Sua boca era desenhada a régua e compasso, como se diz, pelo mais hábil dos artistas, com lábios carnudos e vermelhos, que prescindiam de batom para serem realçados. E seu sorriso?! Ah, o sorriso de Valquíria! Quando sorria, todo o seu rosto se iluminava e seus olhos pareciam, igualmente, sorrir.

Braços, pernas, seios, quadris, abdome, dedos, tudo era proporcional e belo. Quantos pintores e escultores não gostariam de ter essa beldade por modelo?! Creio que todos que a conhecessem. Sua pele, além disso, era perfeita, da cabeça aos pés, sem manchas, verrugas, cicatrizes ou qualquer outra imperfeição. Era de uma tonalidade morena suave, tendendo mais para o levemente rosado. Seus seios eram do tamanho exato, em formato de taça, nem grandes e nem pequenos, mas proporcionais àquele corpo maravilhoso. As nádegas guardavam, como o resto, a mesma proporcionalidade.

Valquíria, porém, não satisfazia o estereótipo de mulher bela, porém burra. Tinha uma inteligência viva e notável e uma cultura rara em pessoas da sua idade. Estava concluindo o curso de Letras em uma renomada universidade paulistana. Gostava de escrever poesias que satisfaziam o mais exigente dos críticos pela sensibilidade e alto valor literário. Era bem-humorada, bem-informada e atenta a tudo e a todos.

“Mulher perfeita”, diria o leitor. Não! Valquíria tinha profundos problemas psicológicos, embora nunca tenha procurado assistência de um especialista. Era, por exemplo, apaixonada pelo pai, mas não com aquele amor filial normal e comum. Sua paixão era, digamos, proibida. Não tinha caráter afetivo, mas sexual.

Várias noites havia sonhado que fazia sexo com o pai. Era, aliás, um sonho recorrente. Acordada, ficava imaginando como seria estar em seus braços, sentir o seu cheiro, ser penetrada por ele e gozar a não mais poder. Nunca manifestara esse desejo, essa paixão, essa tara quem sabe, a ninguém, nem às amigas mais íntimas. Elas não entenderiam. Ninguém entenderia.

O pai de Valquíria, a bem da verdade, embora beirando os cinqüenta anos, era considerado um homem bastante bonito. Os anos pouparam-no dos estragos naturais. Apenas algumas mechas de cabelos grisalhos sugeriam que não se tratava mais de nenhum adolescente. Esse detalhe, porém, em vez de comprometer sua imagem, dava-lhe um charme irresistível para as mulheres.

Sentimentalmente bem-resolvido, profissionalmente bem-sucedido em sua banca de advocacia, era culto, sério e sóbrio. Ficaria horrorizado se ao menos desconfiasse do tipo de paixão que a filha nutria por ele. Amava a mulher, com aquele amor sereno e equilibrado, misto de paixão da adolescência com uma profunda amizade, que descambava para a completa cumplicidade.

Se Valquíria amava o pai, seu sentimento pela mãe era exatamente o oposto. Odiava-a com ódio absoluto. Reconhecia que era uma bela mulher, mas achava-a vulgar, mesquinha, rancorosa e má. Não suportava o seu linguajar desabrido e desbocado, sempre com um palavrão na ponta da língua. Não entendia o que o pai vira nela. Saíra de casa há questão de dias, por não suportar conviver com ela. Fora morar num pequeno apartamento que dividia com duas amigas da faculdade.

É possível que o leitor suponha que uma mulher de beleza tão estonteante, como era Valquiria, e que tinha paixões e sentimentos tão confusos, fosse uma devassa sexual. Engano! Era recatada e tímida, em matéria de relacionamentos, e perdera a virgindade há apenas dois meses, com um colega da faculdade. Detestou a experiência. Provavelmente o parceiro não soube fazer com que essa primeira relação sexual fosse inesquecível. Não agiu com a delicadeza e compreensão, cabíveis em momentos como esse, mas foi, como se diz popularmente, com “muita sede ao pote”.

Valquiria tinha um namorado, Erasmo, por quem acreditava estar apaixonada. Mas não tinha certeza. Desde que o conhecera, nunca mantivera relação sexual com ele, embora desejasse. Não saberia dizer a razão da sua resistência. O máximo de avanço que permitira fora deixar que o rapaz pusesse seu pênis entre as pernas, mas sem abaixar a calcinha. Trocava, claro, beijos ardentes e apaixonados com ele e até lhe permitira, algumas vezes, que chupasse seus seios, mas nunca fora além desse limite. “Quem sabe, um dia”, vivia dizendo ao desesperado Erasmo.

@@@

V

Valquiria, ao sair de casa, tinha consciência de que precisaria trabalhar, para assegurar seu sustento. É verdade que tinha uma boa economia na caderneta de poupança, que guardara da farta mesada que o pai lhe dava mensalmente, para pagar a faculdade e suas despesas. Esse dinheiro, contudo, era suficiente para mantê-la, apenas, por alguns meses ou, se tivesse juízo no gastar (e isso a moça tinha), daria para um ano, no máximo. E depois?

Não queria voltar para casa “com o rabo entre as pernas”, como a mãe dissera que faria. Acreditava que não teria muitas dificuldades para arranjar um emprego. O que precisava, porém, era conciliar o trabalho com os estudos. Não podia largar a faculdade, justo no ano da formatura.

Quando leu o anúncio no jornal, do escritor que precisava de uma secretária, intuiu que esse era o emprego certo para ela. Achou que se tratava de coisa do destino. Mal sabia que era mesmo! Trabalhar com algo que se relacionasse com literatura era tudo o que poderia aspirar naquele momento.

É verdade que o salário proposto não era lá muito tentador. Hum mil reais por mês? Não era uma fortuna. Mas daria para cobrir suas despesas e, possivelmente, sobraria ainda alguma coisa para engordar ainda mais a caderneta de poupança. Ademais, se mostrasse eficiência, poderia negociar um aumento. Sempre se pode.

“Um escritor, quem diria?!”, pensou Valquíria com seus botões, assim que decidiu procurá-lo. “Ainda mais Theobaldo Miranda!”, exclamou, em voz alta, causando susto em Letícia, uma das colegas com as quais dividia o apartamento. Ela havia comprado o livro “Clarita”, do veterano escritor, e o lera num só sopro, embevecida com sua sensibilidade e criatividade. Não entendia, pois, a razão das críticas ácidas e todas negativas ao romance, que lera nos jornais. “Ou esse pessoal é burro, ou não leu o livro”, concluiu na ocasião. 

Assim que Theobaldo botou os olhos em Valquiria sentiu que essa era a secretária certa para pôr um pouquinho de ordem na bagunça em que seu gabinete de trabalho havia se transformado. E, quem sabe, até para organizar a sua vida pessoal. Era bonitinha, a danada! O perigo era da sua beleza impedir que se concentrasse em seus textos. “Bobagem”, pensou, “ela tem idade para ser minha filha ou até neta”, concluiu.

Apesar da entrevista ter sido rápida e formal, com um tratando o outro de “Senhor Theobaldo” e “Senhorita Valquíria”, rolou indisfarçável “clima diferente” entre ambos. O velho escritor não conseguia tirar os olhos de cima da candidata a secretária. Parecia hipnotizado. Esta, por sua vez, viu, no potencial patrão, traços do pai, por quem era tão apaixonada. Sentiu arrepios involuntariamente. Se a moça observasse bem (é até provável que tenha observado, mas disfarçado), veria um certo volume na parte da frente da calça do interlocutor, fruto de sua excitação, que ele buscava, a todo o custo, disfarçar.

Theobaldo, a bem da verdade, não era o tipo de homem de atrair qualquer mulher apenas pela aparência. Baixinho, gordinho, com entradas profundas nas têmporas e cabelos totalmente grisalhos, estava longe de ser o protótipo do galã de novelas. Ademais, os últimos fracassos contribuíram para acelerar seu envelhecimento. Trajava-se com certo desmazelo e as papadas sob os olhos indicavam os excessos que cometia, sobretudo na bebida. Sua voz era rouca, por causa dos charutos fedorentos e baratos que consumia em profusão. Não lembrava, pois, nem de longe, nem com muito exercício de imaginação, o perfil nobre e belo do pai de Valquíria.

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VI
As mudanças no gabinete de trabalho de Theobaldo, em apenas um mês da presença de Valquíria como sua secretária, foram radicais e surpreendentes. Tudo recendia a limpeza, racionalidade e organização. Os livros da biblioteca estavam todos em seus devidos lugares, classificados por gêneros e assuntos. As pastas voltaram para o arquivo, devidamente arrumadas e qualquer pessoa, mesmo que leiga, poderia consultá-las sem a menor dificuldade. As anotações do escritor estavam catalogadas por assunto, bem à mão para quando precisasse delas e na mais absoluta ordem.

Ademais, não havia mais copos de uísque sem lavar espalhados por toda a parte e muito menos garrafas de bebida (nem vazias e nem cheias). Os cinzeiros estavam limpos e eram esvaziados várias vezes ao dia. Valquíria encontrara, escondida entre os livros numa das estantes da biblioteca, uma caixa de legítimos cubanos, da marca Coíba, que Theobaldo havia ganhado de um amigo, há anos, e eram estes os charutos que o escritor fumava agora, em vez dos anteriores “mata-ratos”, fedorentos e capazes de derrubar qualquer pessoa que ousasse experimentá-los, de tão fortes que eram.

Tudo no local estava limpo, organizado e cheiroso. O gabinete de trabalho estava atrativo e confortável e nenhum escritor que o utilizasse teria a mínima desculpa, principalmente a da distração, para deixar de escrever bem. O computador de Theobaldo estava, igualmente, organizado e formatado. Valquíria se concentrara, principalmente, numa pasta de esboços, que continha uns trinta arquivos de romances e contos iniciados e interrompidos. Qualquer um deles poderia ser continuado e, diga-se de passagem, em favor do veterano escritor, todos eram excelentes. Se concluídos a contento, com o mesmo padrão de qualidade do que já estava escrito, Theobaldo teria a perspectiva não somente de um, mas de vários best-sellers nos próximos anos. O problema era convencê-lo a acabar qualquer coisa, no baixo astral em que estava, em decorrência do divórcio e, principalmente, do fracasso de vendas de “Clarita”.

O relacionamento entre o escritor e sua secretária alterou-se, e muito, neste pouco mais de um mês de convivência. Perdeu a formalidade inicial, aquele que de constrangimento mútuo, e se tornou mais amistoso, coloquial, até de certa intimidade. Ambos não se tratavam mais, por exemplo, pelos nomes de batismo, mas pelas respectivas abreviações: Theo e Val. O relacionamento dos dois estava longe de ser, convenhamos, o de um patrão com sua empregada. A moça era inteligente, tinha bom-gosto e já se arriscava mesmo a dar alguns palpites aos textos de Theobaldo,. que este, surpreso com a criatividade e pertinência deles, acatava de bom grado.

Ainda assim, porém, continuava escrevendo naquele seu método dispersivo. Ou seja, trabalhava, simultaneamente, em várias histórias, sem se concentrar, especificamente, em nenhuma. Ora completava mais uma página do romance, cujo título provisório era “Um caso de amor”, ora revisava o conto “Os anti-heróis”, com o qual não conseguia se satisfazer nunca – embora Valquíria achasse que não havia mais nada a acrescentar ou a suprimir – ora iniciava alguma nova narrativa. O escritor era perfeccionista. Sempre encontrava defeitos onde estes sequer existiam, para desespero de sua secretária.

Se as mudanças no ambiente de trabalho eram surpreendentes e no relacionamento de Theobaldo e Valquíria imprevisíveis, mas marcantes, o comportamento de cada um deles também se alterou, e muito (para melhor, evidentemente). Os dois passaram, por exemplo, a cuidar mais da aparência e nenhum deles saberia explicar a razão de tanto capricho. Trajavam-se não mais de maneira informal, mas como se fossem a uma festa de alto luxo. Um queria impressionar o outro e ambos estavam conseguindo o intento.

Theobaldo, por exemplo, a princípio começou apenas a limitar o consumo de uísque. Logo, passou a não sentir mais nenhuma falta de bebida e não tardou a deixar de vez de beber. Com isso, sua aparência melhorou bastante. Passou a fazer caminhadas diárias e emagreceu muitos bons quilos. Voltou a dormir bem, e as oito horas de que seu corpo e mente necessitavam. Estava mais ágil, física e mentalmente, mais lépido, alegre, otimista e bem-humorado. Por sugestão de Valquíria, resolveu esquecer de vez do fracasso de “Clarita” e se concentrar na produção de um novo e bom livro. Todavia, ainda não tinha se decidido a qual dos tantos já esboçados iria se dedicar.

Ia trabalhar, agora, bem-vestido, bem barbeado, cheiroso e, sobretudo, bem-humorado, o que as pessoas ao seu redor notaram de imediato. Voltou a contar piadas e a se divertir com as trapalhadas constantes no noticiário do dia a dia. O gabinete de trabalho já não mais parecia uma prisão, como há pouco tempo se sentia naquele local, mas um lugar aprazível e inspirador. Podia afirmar, até, que, de certa forma, consideradas as circunstâncias, estava feliz como há muito não se sentia.

Ambos passavam mais de doze horas diárias no confortável gabinete, ora trabalhando, ora somente conversando, com descontração e prazer, sobre literatura. Valquíria passou a ir à casa de Theobaldo todos os dias das semanas, inclusive aos sábados e domingos, mesmo sem ganhar hora extra, mas não se importava. Gostava da companhia do escritor. Só faltava, mesmo, dormir ali – o que, pelo andar da carruagem, não tardaria a acontecer – e, quem sabe, mudar-se, de mala e cuia, para aquela casa em que se sentia tão bem.

Erasmo notou isso e estava uma fera com a namorada. Esta, porém, sempre tinha alguma desculpa engatilhada na ponta da língua. Via de regra argumentava que tinha tarefas muito importantes a cumprir e que o namoro poderia ser deixado para depois. Na verdade, seus sentimentos pelo veterano escritor evoluíam dia a dia, ao mesmo tempo em que esfriavam, ou até desapareciam, pelo namorado. Já eram muito mais do que o mero gostar, do que profunda amizade ou do que simples admiração de uma fã por seu ídolo. Valquíria, todavia, sequer havia se dado conta (ainda) desse seu excessivo apego por Theobaldo.


(CONTINUA)

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 

Um comentário:

  1. Pode ser que eu me engane, mas parece que já li esta história aqui mesmo.

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