Nossos cenários são incompletos
Os grandes feitos humanos da atualidade, aquelas obras de
engenharia e aquelas tantas conquistas da ciência, da medicina e, sobretudo, da
tecnologia, que assombrariam os antepassados, fazendo-os crer que fossem frutos
da imaginação ou de delírio, estranhamente, não são apropriados pelos artistas
das mais diversas artes do nosso tempo. Aliás, são sim, posto que rarissimamente.
Quando são, todavia, tardam a ser. E quando inspiram obras artísticas – pinturas,
esculturas, literatura etc. – o são, estranhamente, apenas quando já estão
ultrapassadas. Ainda hoje, raramente encontro, na descrição de cenários de
novelas, romances ou contos, ambientados neste início de século XXI, menções,
por exemplo, à televisão, ao rádio e mesmo ao cinema, como se essas maravilhas
tecnológicas não existissem. Equipamentos como celulares, computadores,
tabletes etc. são mais raros ainda. Por que?
Sei que essa minha colocação é um tanto polêmica e que
muitos a considerarão bobagem. Paciência! Em conversa com vários amigos
escritores, esse aspecto invariavelmente gera, sempre que o trago à baila,
acaloradas discussões. A maioria atribui à minha suposta desatenção quando da
leitura dos vários livros recentes, o fato de eu não detectar qualquer menção a
esses símbolos da modernidade. Quando desafio-os a citarem algum romance, conto
ou novela em que os autores citem, mesmo que ocasionalmente, essas coisas
todas, hoje tão triviais em nossas vidas, meus interlocutores se enrolam e são
incapazes fazê-lo. Não citam uma única e reles obra literária em que haja tais
referências. Não digo que elas não existam. Existem e eu mesmo já citei, aqui
neste espaço, quem, quando e como as citou. Quem me desafia e contesta,
porém... é incapaz de mencionar um único caso concreto, embora garanta, com
ênfase, que essas maravilhas são onipresentes na literatura contemporânea. Não
são!
E por que faço tanta questão que coisas tão triviais do
cotidiano sejam registradas em nossas obras literárias? Por uma razão bem
objetiva e até óbvia. Não me canso de enfatizar que o escritor é testemunha ocular
do tempo em que vive. Ao contrário do jornalista, não escreve “para o dia
seguinte”, mas “para a eternidade” (caso isso fosse ou seja possível, sabe-se
lá). Como um leitor do futuro, digamos do século XXII, irá visualizar esta
nossa época, se não a descrevermos com detalhes? Afinal, não se concebe que o homem
do futuro (caso, claro, a humanidade tenha um e não se destrua antes, por sua
insensatez e imbecilidade) ficará tecnologicamente estagnado no que criou até
aqui. Provavelmente – ouso afirmar que certamente – todas estas invenções
atuais, que pasmariam os antepassados – serão tidas e havidas como meras
bugigangas imprestáveis, como coisas obsoletas, antigas e ultrapassadas pelos
nossos descendentes do século XXII (supondo, claro, que existam e que alguém as
registre para seu conhecimento).
Não saberíamos nada do século XIX, ou dos primeiros anos do
século XX (apenas para citar períodos mais recentes), se escritores como
Machado de Assis, Victor Hugo, Honoré Balzac, Fedor Dostoievsky, Charles
Dickens, Edgar Alan Poe e vai por aí afora, não descrevessem, com clareza,
perícia e objetividade, como eram as cidades do seu tempo: o que as pessoas
vestiam, como moravam, como se locomoviam etc.etc. etc. Não sei onde está a
dificuldade de dotarmos nossos personagens das mesmas facilidades tecnológicas
de que usufruímos. Qual a razão, por exemplo, deles não terem televisão em casa
– equipamento tão trivial que dia desses vi um sem-teto, que improvisou um “cafofo”
no vão de um viaduto aqui da minha cidade, como sua “moradia”, que não tinha,
óbvio, o essencial, nem mesmo cama para dormir, dispor de um televisor
portátil, que provavelmente encontrou no lixo, mas que era seu e estava ali? Exagero?
Não! Fiquem atentos quando andarem pelas ruas (e a capacidade de observação é
característica básica de bons escritores) que vocês verão coisas iguais.
O que impede que nossos personagens tenham celulares (hoje
quase todo mundo tem)? Ou que contem com computadores, mesmo que dos já defasados?
Ou que tenham perfis no Facebook, no Twitter ou em outra qualquer das tantas
redes sociais? O que impede? Como tornar os enredos minimamente verossímeis sem
nada disso? Qual o motivo de nossos personagens não gostarem de futebol, não
torcerem fanaticamente por algum time, ou não apreciarem vôlei, basquete ou
outro dos tantos esportes praticados na atualidade? Não são coisas comuns do
nosso tempo? E por que não aparecem nos enredos que urdimos? O que o potencial
leitor do século XXII pensará de seus antepassados do século XXI? Que retroagiu
às cavernas, à era da pedra lascada? Provavelmente sim! Eu, no lugar deles, concluiria
isso.
Por que raros mencionam as grandes obras de engenharia da
atualidade? Em que romance, conto ou novela, por exemplo, você já leu a mais
remota referência ao Eurotúnel, que atravessa, debaixo do mar, a profundidades
de até 240 metros, a distância que separa a Grã-Bretanha da França por ferrovia
sob o Canal da Mancha? Aliás, nem mesmo os meios de comunicação sequer citam
essa que é uma das maiores obras de engenharia de todos os tempos, rivalizando
com as pirâmides de Gizé, no Egito, com a Muralha da China e com o Coliseu de
Roma, até por ser infinitamente mais útil e mais complexa do que elas. Por que
nenhum escritor menciona, nem mesmo de passagem, o Eurotúnel? Aliás, tenho
certeza que a imensa maioria dos brasileiros sequer sabe que ele existe e para
o que serve. Imaginem o potencial leitor do século XXII!!! Por ser tão
polêmico, certamente voltarei a tratar desse tema.
Boa leitura.
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De fato você já falou disso. Não sabia que os personagens de novela não se relacionam com essas máquinas. Celular e tablete, eu já vi em cena. Em livros atuais não tenho visto. O que leio hoje se passa na década de setenta. Fala das coisas daquela época, com detalhes. É, precisamos detalhar nossos costumes de hoje.
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