Cala-te boca
* Por
Marcelo Sguassábia
- Um doce pra quem me
disser quando vamos poder conversar tranquilamente, como nos velhos tempos.
- Ah, que tolinho...
você e eu temos telhado de vidro. Pra tudo que a gente disser, vai ter alguém
na escuta. O pior é que não dá pra confiar 100% em varredura. Muito menos em
quem varre.
- Pelo Higino eu ponho
a mão no fogo, está comigo desde que comecei na vida pública. Era varredor na
minha cidade e não deixava passar um pelo de sobrancelha sem varrer.
- Mas ele é um
varredor de rua, não um perito em espionagem.
- O princípio é o
mesmo. O homem é um cão farejador. Está lotado no gabinete como assessor
especial e arrumei emprego pra família toda dele no almoxarifado do Itamaraty.
Eu desconfio da minha mãe mas não desconfio do Higino.
- Não sei, pra mim
todo mundo é suspeito até que se prove o contrário.
- Como fazemos, então?
Sinal de fumaça, pombo-correio, telepatia...
- Não vejo saída.
Telefone é grampeado, email deixa rastro, agora inventaram essa história de
quebra de sigilo eletrônico...
- E carta?
- Nem pensar, ainda
mais agora que os Correios podem entrar na mira da investigação. Lembra daquela
história de distribuir santinho junto com a correspondência?
- A gente faz uma
triangulação, uma quadrangulação ou até uma octangulação pra dificultar que
alguém descubra. Eu mando a carta pra um laranja, que manda pra outro laranja,
depois outro e outro até chegar a você. Pra responder você faz o mesmo, mas com
laranjas diferentes. Não vão pegar nunca.
- Isso demora muito.
Alguns assuntos temos que resolver rápido.
- Bom, isso é.
- Mas espera aí... os
Correios não são Correios e Telégrafos? Então vamos botar pra funcionar os
telégrafos, que quase ninguém usa mais. Fazemos um curso de código morse e boa,
conversamos à vontade. Nem por decreto vão pegar alguma coisa, porque jamais vão
suspeitar que a gente use algo tão obsoleto.
- Tem também
rádio-amador, tipo PX e PY... mas aí o sinal é por radiofrequência, podem
interceptar.
- Olha, uma coisa é
certa: em ambiente fechado você pode esquecer que nós nunca mais vamos poder
falar. Até em primeira comunhão e missa de sétimo dia vão dar um jeito de
instalar um microfone em nossas cuecas. Ou melhor, na minha cueca e no seu
sutiã. Talvez no meu paletó e no seu tailleur. Quem sabe na sua calcinha e na
minha abotoadura, sei lá. É muita gente cuidando do cerimonial, e tem sempre
alguém levando uns trocos pra meter uma microcâmera onde não deve.
- É, seria perigoso
mesmo. Um “amém” seu, um “Deus seja louvado” meu e pronto: já iriam falar que é
código, que Nossa Senhora, Ofertório e Sacramento são codinomes e batizariam a
coisa toda de “Operação Castigo Eterno”.
- E criptografia,
aquele negócio que embaralha tudo?
- Não. Já inventaram
um treco que desembaralha. Esquece.
- Bom, resumo da
ópera: tamo na roça.
- Na roça e feito dois
marrecos mudos.
- Que paranoia. Já
pensou se captam essa nossa conversa, falando do nosso medo do flagra? Não
precisa de mais nada. Seria a confissão de delito definitiva, sem chance de
defesa.
- Já sei: arrendamos
uma das fazendas do Sarney e vamos uma vez por semana pra lá. Sem assessor, sem
segurança, sem nada. Aí nós dois tiramos a roupa e vamos pro meio do pasto. Pra
maior segurança, cochichamos um no ouvido do outro. Acho que aí funciona.
- Aborta o plano.
Esqueceu dos paparazzi?
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
Não existe mais segredo, muito menos de confessionário. Lá é um lugar em que também pode ter escuta.
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