A
esposa dedicada
* Por Celamar
Maione
Domingo chuvoso, 11 horas da manhã.
Nercina preparava o almoço. Ela e o marido esperavam os pais, sobrinhos e
cunhados para comemorarem os 5 anos de casamento. Nercina estava distraída, com
a geladeira aberta, quando Genildo passou pela porta da cozinha e falou:
-Tchau. Estou indo embora.
Distraída, Nercina respondeu:
-Vai na rua comprar cerveja? Compra
mais refrigerante também. Você sabe que a Cremilda não gosta de cerveja. E
ainda tem as crianças. Genildo, ei Genildo.
Não obteve resposta. Pegou um pano de
prato, limpou as mãos, e foi até a sala. Só então reparou nas malas:
-Genildo, que malas são essas?
Genildo, que abria a porta de casa,
respondeu secamente:
-Não reconhece? São minhas.
-E o que você está fazendo com as suas
malas na porta de casa?
-Não ouviu? Me despedi de você! Vou me embora.
-Embora? Que brincadeira é essa?! Daqui
a pouco seus pais estão aqui, irmãos, sobrinhos, todo mundo. Vamos comemorar
nossos cinco anos de casamento e...
-E nada, Nercina. E nada. Eu disse para
você que eu não queria comemoração nenhuma. Eu disse para você que não
queria continuar casado. Mas você forçou
a barra, fez esse almoço, chamou a
família e vai comemorar sozinha, porque
eu estou indo embora.
Os olhos de Nercina se encheram de
lágrimas. Seu coração disparou. Começou a esfregar uma mão na outra:
-Que brincadeira é essa?! Você está de
brincadeira comigo! Não tem graça, você não vai fazer isso comigo na frente da
sua família, na frente da minha irmã, dos meus sobrinhos.
-Vou fazer, sim. Já estou fazendo.
Genildo abriu a porta e quando pegava as malas, Nercina voou em cima dele e
começou a socá-lo:
-Não vai, não! Entra! Sua casa é aqui!
Fecha essa porta!
Começaram a brigar. Genildo empurrava a
mulher, que empurrava Genildo e chutava a porta. Genildo se desvencilhou dela. Aproveitou para pegar as malas. Ela,
novamente, voou para cima do marido. Dessa vez, agarrou a canela dele. Parecia
uma cadela chamando a atenção do dono. Agarrou-se no calcanhar de Genildo
gritando alucinada:
-Não vai! Não me deixa! Amo você!. Pelo
amor de Deus, não faz isso comigo! Eu imploro, eu imploro.
Chorava. Parecia um chafariz. Estava
descontrolada.
Genildo empurrava Nercina com o pé:
-Me larga, mulher! Me solta! Deixa eu
ir embora. Olha o escândalo. Os vizinhos, o que os vizinhos vão dizer?
Os vizinhos já abriam as portas.
Comentavam. Uns com pena, outros querendo interferir. Martinha, a vizinha mais
chegada, se aproximou:
-Nercina, não faz isso. Olha o
vexame. Depois vocês conversam. Vocês
estão de cabeça quente.
Nercina gritava completamente fora de
si:
-Nãoooooo! Ele é meu! Não vou deixar
ele ir embora para ficar com vagabunda!
Genildo tentava se desvencilhar. A
confusão estava formada. Enquanto alguns vizinhos apenas assistiam ao impasse
da porta de suas casas, outros tentavam ajudar. Até que alguém falou:
-Cheiro de carne queimada. É a comida
queimando.
Martinha entrou em casa para desligar o
fogo. Enquanto isso, Nercina, com uma força descomunal, continuava agarrada á
canela de Genildo, que pedia ajuda à vizinhança:
-Me ajuda, seu Almeida! Tira essa
mulher do meu pé!
-Eu? Tiro não! Em briga de marido e
mulher não se mete a colher.
Virou as costas e se foi. Genildo
conseguiu tirar as mãos de Nercina. Ela, no chão, com o cabelo desarrumado, gritava e chorava ao mesmo
tempo:
-Não vai! Não vai!
Com raiva, Genildo humilhou mais a
mulher na frente da vizinhança, que
a tudo assistia, como se a briga fosse
mais um capítulo de novela:
-Louca! Você é louca varrida! Não quero
nunca mais olhar para sua cara. Que vexame!!
A vizinha, Martinha, ajudou Nercina a
se recompor. Os vizinhos se dispersaram, comentando. Era o assunto do dia na
rua.
Duas horas depois, a família estava
toda reunida na casa de Nercina para o almoço que não aconteceu. A mãe de
Genildo, com um lencinho na mão, chorava num canto, sem dizer nada. Os pais de
Nercina culpavam Genildo:
-Eu falei, minha filha. Eu falei para
você não casar com ele. Não presta! Nunca prestou!
O pai de Genildo se doeu. Começou a
bater boca com os pais de Nercina. As crianças corriam em volta da casa,
alheias a tudo. A irmã de Nercina, Cremilda, alertava:
-Vocês não vão querer brigar também! Daqui a pouco os vizinhos chamam a polícia.
Os ânimos não se acalmavam. De um lado,
o pai de Genildo defendia o filho. Do outro, os pais de Nercina acusavam o
genro. Nercina permanecia sentada no sofá, olhando para o nada. Estava fora de
órbita. Para acabar com a discussão,
Cremilda foi até a cozinha, pegou duas panelas, chegou no meio da sala e bateu
com uma panela na outra:
-Calma! Vamos nos acalmar. Agora não
adianta brigar. Onde é que o Genildo está? Ele disse para aonde ia Nercina?
Nercina não respondeu. Continuava
olhando para a televisão desligada. A irmã comentou:
-Pronto. Pirou !
Procuraram por Genildo. Nenhum amigo
sabia do paradeiro de Genildo. O celular
na caixa postal.
A família se agitou. Todos á procura de
Genildo. Menos Nercina que, sentada no sofá, olhava atentamente para a
televisão desligada. Pensava. As brigas que tiveram nas últimas semanas
passavam pela cabeça de Nercina. Não era de hoje que Genildo queria abandonar o
casamento. Ela tentou de tudo para ficarem juntos. Só restava fazer uma coisa
para manter Genildo ao seu lado. Queria o marido de qualquer maneira. Pagava
qualquer preço. Queria continuar casada.
Enquanto a família procurava Genildo,
Nercina foi até o quarto, pegou a caixa de tranqüilizantes e enfiou tudo
garganta abaixo. Deitou na cama e esperou o resultado.
Quem encontrou o vidro de tranqülizantes
jogado na cama ao lado de Nercina foi o sobrinho mais velho, Geninho, de 9
anos. O garoto saiu pela casa gritando com o vidro de tranqüilizantes na mão,
enquanto a família estava mobilizada para procurar Genildo:
-A tia Nercina tá dormindo! Tia Nercina
tá dormindo! Olha o que eu encontrei, o remédio que a mamãe toma para dormir.
Cremilda pegou da mão do menino:
-Me dá isso aqui. Pelo amor de Deus!
Gente, chama uma ambulância, a Nercina
se suicidou!
O filho mais novo se agarrou na saia de
Cremilda:
-Mãe, tô com fome!
-Agora eu não posso! Não vê que tua tia
tá passando mal?
A ambulância chegou. Mais espetáculo
para a vizinhança. A casa de número 52 estava comentada naquele domingo no bairro.
Nercina foi para o hospital. Tomou
lavagem. Ficou internada de um dia para o outro. No caminho de volta para casa, no carro
da irmã,
falou:
-Cremilda, se o Genildo não voltar para
mim, tento o suicídio novamente.
E tentou mais duas vezes. Queria chamar
a atenção de Genildo. Deu certo.
O romance com a amante terminara. Então
Genildo voltou para Nercina, mesmo sem amor.
Conhecia Nercina e sabia que, pelo menos, ela
era boa dona de casa. Durante os 20 anos de casamento ainda teve muitas
amantes. Nercina sabia de todas. Quando ela desconfiava que Genildo tinha
outra, arrumava as roupas do marido com cuidado. Comprava perfumes novos.
Cuidava dele com uma dedicação canina, para deixá-lo impecável para passar ás
tardes nos braços da rival.
Martinha, a confidente,
questionava o comportamento da vizinha amiga:
-Você sabe de tudo e não faz nada? Toma
uma atitude! Acorda!
-Isso é amor. Quando a gente ama,
aceita todas as humilhações do mundo.
E assim, encerrava o assunto com olhar
de mulher perdida em devaneios.
Quando Genildo ficou doente, contratou
os melhores médicos. Cuidou dele, dia e noite. Dava os remédios na hora certa.
Pagou até uma empregada para fazer comida e arrumar a casa, enquanto ela se
dedicava ao marido doente 24 horas. No momento de sua morte, Nercina segurava-lhe as mãos com força.
No dia do enterro, Nercina, não se constrangeu quando apareceram cinco
ex-amantes de Genildo. Duas, inclusive, disseram que ele era pai de seus
filhos. Atendeu as rivais com uma educação absurda. Não fez a menor menção de
interferir, quando se aproximavam do caixão do
falecido. Na hora em que o padre encomendou o corpo, chorou
discretamente.
Antes de sair do cemitério, amparada
pela fiel amiga Martinha, olhou mais uma vez para a lápide com as inscrições:
aqui jaz o melhor marido do mundo. Em cima da sepultura o retrato de Genildo
sorria para ela.
* Radialista e
jornalista.
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