A viagem
* Por
Antonio Olinto
Já estavam no mar há
muito tempo, Suliman, que marcava os dias a faca numa pilastra de madeira,
dizia que eram vinte e oito, quatro semanas, certa manhã o navio amanheceu
parado, Mariana saiu para o convés, o mar parecia um pano estendido até lá
longe, nada se mexia, as velas pendiam murchas, não havia vento nem ondas, os
homens se debruçavam sobre a amurada, a filha de Dona Júlia riu no seu jeito e
disse:
- Já era tempo, não
agüentava mais aquelas sacudidelas o dia inteiro.
Suliman olhou para ela
sério:
- Não diga o que não
sabe, moça. O pior que pode acontecer num veleiro é falta de vento.
Contudo houve uma
alegria geral naqueles primeiros dias, Mariana brincou mais à vontade, o mulato
pernambucano bateu num atabaque até tarde, Maria Gorda jogou uma coisa no mar,
seria presente para Iemanjá?, a avó lembrou-se com nitidez de uma velha imagem,
a do momento em que o homem que a levara de canoa de Abeokutá a Lagos apontara
para longe e dissera: Olha. A lagoa estava tão quieta como este mar de agora, e
o que vira fora o conjunto de casas da cidade em que o tio a vendera. Durante
vários dias o vento não veio, o mar não se moveu, depois de uma semana de
imobilidade o capitão pediu que todos se reunissem no convés, apareceu e
explicou:
- Estamos numa zona de
calmaria. Nossa água dá para mais de oito meses e quanto à comida não há
problema, cada um trouxe o que podia e o navio tem provisões para muito tempo.
Os homens comentavam
que não se via mais o Cruzeiro do Sul, durante o dia muita gente pescava,
apareceram caniços e anzóis, um crioulo forte chamado Rodrigo pegava peixes
enormes e um dia descobriu que mariscos se haviam agarrado ao casco do navio
imóvel, desceu até lá numa corda, arrancou os mariscos, pediu a Epifânia que os
fervesse e juntou amigos para partilharem do prato. Mariana olhava o céu, nunca
vira tantas estrelas, algumas riscavam a noite, o capitão conversava com ela e
falava-lhe dos outros planetas, das estrelas cadentes, de outros mundos, de
sóis, de cometas.
A alegria dominou
durante outra semana ainda o navio, mas foi-se diluindo em pedaços cada vez
maiores de silêncio, Mariana começou a sentir moleza no corpo, mulheres e
crianças deixaram de sair normalmente ao convés, só os homens é que andavam de
um lado para o outro, ficavam olhando o mar parado, alguns mascavam fumo, à
noite quase todos bebiam cachaça, então voltava a aparecer um pouco de alegria.
O primeiro a ficar doente foi o mulato de Pernambuco, um dia não saiu da cama,
o capitão foi vê-lo, a menina ouviu a palavra disenteria, e logo havia mais
três doentes, uma das irmãs Borges em vez de coco fez sangue, levaram o vaso
para o capitão ver, apareceram remédios surgidos não se sabia de onde, Epifânia
tratou de Luzia Borges com todo o cuidado, a avó não abandonava o seu lugar,
imóvel num canto da cama, às vezes encolhida, Epifânia era quem fazia agora
toda a comida, a água tinha hora certa, vinha numa tina grande que um
marinheiro trazia e distribuía para cada um, Mariana voltou a subir ao convés,
encontrou todos os malês curvados no chão, rezando em direção a Meca,
levantavam-se de vez em quando, tornavam a se ajoelhar, Sulivan ficara mais
magro, suas roupas davam a impressão de ter crescido, Mariana acostumou-se a
passar horas olhando o mar, Mariana e o mar, perdia-se nele, esquecia as
coisas, revia a enchente do Piau, a cara de Padre José, os olhos de vidro do
carneiro morto, sentia-se tonta em certos momentos e então voltava a ver o mar,
Mariana e o mar, parecia-lhe que o navio se movimentava, mas não, tudo estava
quieto, no dia seguinte levou um pedaço de pano para um lugar mais alto, perto
do leme, estendeu o pano sobre uma tábua, deitou-se e ficou olhando o mar
assim, os dois olhos viam o horizonte igual, perdeu a fome, Epifânia teve de ir
buscá-la, deu-lhe comida à força, Emília e Antonio brincavam menos, o cheiro lá
embaixo começava a ficar forte, era de azedo, coisa podre, depois de alguns
minutos a gente se acostumava, não pensava mais naquilo, a farinha com arroz se
atulhava na garganta, fazia a menina tossir, não havia água para lavar as mãos
depois da comida, Mariana regressava a seu posto e esperava anoitecer, muita
gente passava a noite no convés, de manhã quase ninguém saía do lugar, o
capitão distribuía água e bolachas, a menina ia ver a mãe e a avó, o número de
doentes aumentava. Epifânia enxugava o rosto dos de cama, limpava a boca de
Luzia Borges, uma noite os tambores soaram com mais força, houve dança no meio
do porão, marinheiros com facas na cintura ficaram parados vendo os passageiros
dançarem, um dia Mariana não conseguiu acordar direito, a mãe deu-lhe água e
biscoitos, mais tarde ferveu um pedaço de carne-seca, a menina mastigou com
cuidado, não sabe quanto tempo esteve ausente da vida no navio, lembra-se de
uma noite de luar, então já estava boa, o mar parecia continuar o convés, a
água se imobilizava iluminada.
A primeira morte
ocorreu quando a calmaria durava mais de mês, foi de um preto de Alagoas, tinha
sido dos mais silenciosos, deixara de comer, como viajava sem família ninguém
lhe deu atenção, amanheceu morto, o capitão mandou que o corpo fosse levado
para cima dentro de um lençol, Mariana seguiu o acompanhamento, no convés os
rostos olhavam para a cara do morto, um marinheiro rezou um Padre-Nosso e uma
Ave-Maria em voz alta, os homens que seguravam o lençol levaram-no até a borda
do navio, deixaram o morto escorregar, mas o corpo não afundou, ficou boiando,
daí a pouco havia peixes que atacavam o cadáver, o capitão disse que deviam ter
amarrado um peso no morto, só que não havia muita coisa pesada a bordo que
pudesse ser dispensada, os homens ficaram olhando o morto ser arrastado pelos
peixes, depois cada um voltou para sua cama, poucos foram os que , na amurada,
continuaram de olhos na luta sobre o mar. O segundo morto foi o mulato de
Pernambuco, acharam-no no convés com pedaços de biscoito nas mãos, a boca
parecia ter sido detida no ato de mastigar, quando seu corpo caiu nas águas um
pedaço de pano saiu boiando sobre o liso da superfície. Morreu em seguida a
menina Joana, irmã de Abigail, tinha chorado muito durante dias seguidos, uma
tarde ficou quieta. Depois de três meses sem vento seis pessoas haviam morrido,
Catarina fazia agora questão de subir de manhã para o convés, tomava sol
apoiada pela filha e pelos netos, no fundo do pensamento passara a só ver a
chagada a Lagos, nada mais existia, mortes não a tocavam, sol e comida, sim,
eram importantes, comia com decisão, mastigava bem a farinha e o arroz, às
vezes um orobô, pedia que a levassem para a cama no momento em que o sol ficava
demasiadamente forte, fechava os olhos e concentrava-se na espera. Diziam que o
navio se movera fora do caminho, uma tarde morreu um dos malês, os outros
rezaram para o morto, amarraram-lhe os pés, com pedaços de pedra achados no
porão, o corpo mergulhou no mar num mergulho sem ruído, Mariana arrastava-se
muitas vezes pelo chão, a mãe segurou-lhe o rosto um dia, olhou-a espantada,
disse:
- Minha filha, você
está com treze anos.
Estava. Sentia-se mais
velha, só queria conversar com Abigail, que já era moça, mas de vez em quando
corria para perto dos irmãos menores, doida para brincar de roda, ou passava
horas sem dizer nada, fitando os objetos, as pessoas, o mar era como se fosse
um enorme assoalho brilhante, dava a impressão de que qualquer um podia andar
por cima dele. Notou que a comida tinha diminuído, o capitão andava com um
revólver aparecendo e chegou o dia em que morreram duas pessoas de uma vez.
Mariana estava meio dormindo quando ouviu a notícia. A voz de Maria Gorda tinha
um tom de susto:
- Esta noite partiram
dois: o Sebastião e o filho do Ribeiro.
A menina foi ver o
lugar em que dormia a família Ribeiro, faltava o menino que sempre estivera no
grupo, quis achar o Sebastião, um perto magro, de barbicha, e não o encontrou.
Soube que os dois tinham sido atirados ao mar durante a noite.
O vento, quando
começou a chegar, não parecia suficiente para empurrar o navio. O ar se agitou
ligeiramente por muitos dias, os marinheiros entraram numa atividade
incessante, quase ninguém comia mais a bordo, o cheiro de fezes se acentuava em
certos lugares, o capitão comandou três homens para limparem tudo, jogavam água
no porão, no convés, esfregaram o chão com vassouras, mesmo assim morreram três
pessoas numa só tarde, num momento em que as ondas se formavam e o navio
começava a jogar. Duas velhas e um velho, em que Mariana jamais havia reparado,
envoltos em lençóis foram levados para cima, a capitão rezou por eles, desta
vez o barulho dos corpos no mar soou nítido no início da noite. E logo os
tambores bateram com violência, a avó percebeu que era o toque dos eguns, o
axexê dos mortos, mas também era um toque de alegria, dos eguns passaram os
atabaquistas a bater para Iansã, Abigail saltou para o meio do porão, dançou
forte no assoalho velho, agitou as mãos num abandono, cantou em iorubá. Na
manhã seguinte o navio andava, as velas se sacudiam no ar, as cordas balançavam
de um lado para o outro, o convés ficou cheio, os rostos negros tomavam sol,
pouco se falava, ao meio-dia a comida foi comida com entusiasmo, Epifânia botou
dendê no peixe seco, reuniu os filhos ao redor de si, Mariana, Emílai e Antonio
comeram em silêncio, as mãos pegavam no peixe, punham farinha no dendê,
amassavam tudo até que se formasse um bolo, depois metiam na boca, Emília era a
mais delicada, não limpava as mãos no vestido, Mariana encostou-se no corpo da
avó depois de comer, ficaram ali de torpor, sentindo o vento que atravessava o
convés.
O navio pegou vento
durante muitos dias, às vezes vento forte, poucos podiam atravessar o convés em
segurança, Maria Gorda levou um tombo. Mariana lembrou-se da queda de Susana na
ladeira da Bahia, ela rira de não conseguir parar, hoje não achava graça nas
coisas, as contrário, apesar do vento e da animação que voltava a bordo, a
menina continuava a sentir o corpo mole, sem vontade de fazer coisa alguma,
comer chegava a ser esforço. O vento já soprava há suas semanas quando morreu
um marinheiro, foi a última das mortes na viagem, diziam que o homem passara
dias sem tomar conhecimento do mundo, a reunião para jogar o corpo no mar se
fez quase com raiva, os passageiros olhavam sérios para o lençol, cada um
voltado para o rosto quase roxo do morto, carecia atirá-lo o mais depressa
possível nas águas, enquanto o faziam era como se soubessem que não haveria
outras mortes e tornava-se necessário acabar depressa com aquela, dispor do
cadáver rápido e concentrar a atenção no vento que lavava o navio em subidas e
descidas sobre as ondas, a tempestade que se abateu sobre ele naquela noite não
provocou medos, vento e chuva não permitiam que a embarcação se detivesse, a
calma da manhã seguinte foi que assustou, mas o vento continuava a bater nas
velas.
"A casa da
água" - Romance – 1969
·
Escritor,
membro da Academia Brasileira de Letras
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