

Atrás do art noveau
* Por Mariella Augusta
Atrás de minha casa morava uma sombra. Era uma grande casa, esparramando-se em janelas e varandas por todos os lados, tingida por um branco emprestado, um branco cuja castidade perdera-se toda, na expressão mortuária do verde e do cinza, nos desenhos aterrorizantes que o pincel dos dias, enlouquecido, escorreu por seu corpo. Lá fora, diferentes níveis quebravam perspectivas. Lá fora, em silêncio, cresciam murtas e ciprestes. Era um lugar de doce frescura, onde o início do século congelara sua competência de ser agradável; onde qualquer um, acredito, se deixaria ficar exercendo preguiça e tranqüilidade, esquecido pela urgência e pela vida. Atrás desta casa morava uma sombra. Quando morta a claridade, era certo vê-la. Talvez só a visse à noite... talvez, pois o tempo com insistência e êxito tem amofinado minha memória. Por várias vezes a fiquei esperando, com os olhos pesados, suporte de sono e medo, a fim de vê-la passar e passar e passar, dividindo com ela a agonia de uma noite sem destino.
Assim as horas mortas voltavam à vida por arte desta presença singular que não ouso definir - quem me acreditaria? Que, por sua forma inumana causava pavor e curiosidade. Que, em vigília da escuridão era também vigiado. Que, se movendo no escuro em calada peregrinação era leve, leve como a lua suspensa no céu, como a infinidade de estrelas prontas para cair. Leve, para não despertar os que em sua vida dormiam. Levava na carne a cor da noite e andava sem fim, sem tropeços num caminhar atrevido, circense. Donde quer que surgisse, era sempre a mesma - elegante, silenciosa, sombra.
Nunca gozamos de intimidade. Poderia dizer que com a distância afastávamos demasiadas alegrias e incondicionais tristezas. Mas como ninguém há para testemunhar o passado, devo confessar que sua notável presença apenas desconsiderava a minha intromissão. Eu a admirava e ela era o objeto. Casamento morganático. Amor verde que eu não tencionava sazonar.
Ainda posso me lembrar a primeira vez que minha fantasmagórica hóspede me notou. Protegida pelo quase compacto art noveau de minha janela e pela guarda de minha mãe, ousei acender a luz. Ela então se voltou, sem forma, sem susto ou ímpeto. Talvez por simples respeito àquela que, se lhe faltasse, não teria vida a minha sombra. Experimentei com ilusão um gesto de entrega, iria com ela até as profundezas donde se agitara - a tola submissão dos que amam. Nunca mais o fiz. Compreendi sua discrição. Não existia. Estava diante de mim algo que nunca vira, que não precisava de calor, de generosidade, de comunicação. Mostrando que, ali, solidão não equivaleria jamais a sofrimento. Depois do dia tornar-se estéril, eu pensava no meu rebento da escuridão. Temia que me faltasse. Porque noites havia onde sua liberdade o furtava de mim. E em muitas dessas passagens de abandono ouvi aqueles gritos atormentados. Gritos disformes, variados, soltos, verdadeiros. Um grito tão agudo que em sua rápida travessia cortava os ares brilhando e doendo.
Por mais que isto pareça desobedecer à austera lógica, o amor reinventa o tempo. Portanto, não posso precisá-lo. Sei que se desprendeu de nossas vidas como pecúnia daquele que deve. E, enquanto correu para o nada, eu estive imóvel, retendo minha imaginação, guardando-a em único recipiente, esquecendo-me que deveria seguir ilimitada, vaporosa. Eu havia interrompido meu pulso, sentenciado-me à sucumbência. Cala-se quando se descobre menor. O amor é este entendimento.
Pavorosamente, um dia, exibida ao sol, estava a minha sombra. Os olhos estrangulados, a pele coberta por veste hirsuta, o sangue secando em sua boca arregalada. Materializada pelo toque obsceno da morte. Trazida a meu testemunho, nua, desmascarada. Vendo-a assim, tão improvável, compreendi que a melhor maneira de amar era de lá, de trás da janela.
NR: Conto extraído do livro "O fio de Cloto" (Ed. Ícone. 2004).
* Bacharel em Direito, mestranda da FFLCH (USP), escritora, autora de “O Fio de Cloto”, livro de contos prefaciado por Bruno Fregni Basseto, grande filólogo e vencedor do Prêmio Jabuti. Publicou crônicas no “Jornal das Artes” e artigos em várias revistas acadêmicas.
* Por Mariella Augusta
Atrás de minha casa morava uma sombra. Era uma grande casa, esparramando-se em janelas e varandas por todos os lados, tingida por um branco emprestado, um branco cuja castidade perdera-se toda, na expressão mortuária do verde e do cinza, nos desenhos aterrorizantes que o pincel dos dias, enlouquecido, escorreu por seu corpo. Lá fora, diferentes níveis quebravam perspectivas. Lá fora, em silêncio, cresciam murtas e ciprestes. Era um lugar de doce frescura, onde o início do século congelara sua competência de ser agradável; onde qualquer um, acredito, se deixaria ficar exercendo preguiça e tranqüilidade, esquecido pela urgência e pela vida. Atrás desta casa morava uma sombra. Quando morta a claridade, era certo vê-la. Talvez só a visse à noite... talvez, pois o tempo com insistência e êxito tem amofinado minha memória. Por várias vezes a fiquei esperando, com os olhos pesados, suporte de sono e medo, a fim de vê-la passar e passar e passar, dividindo com ela a agonia de uma noite sem destino.
Assim as horas mortas voltavam à vida por arte desta presença singular que não ouso definir - quem me acreditaria? Que, por sua forma inumana causava pavor e curiosidade. Que, em vigília da escuridão era também vigiado. Que, se movendo no escuro em calada peregrinação era leve, leve como a lua suspensa no céu, como a infinidade de estrelas prontas para cair. Leve, para não despertar os que em sua vida dormiam. Levava na carne a cor da noite e andava sem fim, sem tropeços num caminhar atrevido, circense. Donde quer que surgisse, era sempre a mesma - elegante, silenciosa, sombra.
Nunca gozamos de intimidade. Poderia dizer que com a distância afastávamos demasiadas alegrias e incondicionais tristezas. Mas como ninguém há para testemunhar o passado, devo confessar que sua notável presença apenas desconsiderava a minha intromissão. Eu a admirava e ela era o objeto. Casamento morganático. Amor verde que eu não tencionava sazonar.
Ainda posso me lembrar a primeira vez que minha fantasmagórica hóspede me notou. Protegida pelo quase compacto art noveau de minha janela e pela guarda de minha mãe, ousei acender a luz. Ela então se voltou, sem forma, sem susto ou ímpeto. Talvez por simples respeito àquela que, se lhe faltasse, não teria vida a minha sombra. Experimentei com ilusão um gesto de entrega, iria com ela até as profundezas donde se agitara - a tola submissão dos que amam. Nunca mais o fiz. Compreendi sua discrição. Não existia. Estava diante de mim algo que nunca vira, que não precisava de calor, de generosidade, de comunicação. Mostrando que, ali, solidão não equivaleria jamais a sofrimento. Depois do dia tornar-se estéril, eu pensava no meu rebento da escuridão. Temia que me faltasse. Porque noites havia onde sua liberdade o furtava de mim. E em muitas dessas passagens de abandono ouvi aqueles gritos atormentados. Gritos disformes, variados, soltos, verdadeiros. Um grito tão agudo que em sua rápida travessia cortava os ares brilhando e doendo.
Por mais que isto pareça desobedecer à austera lógica, o amor reinventa o tempo. Portanto, não posso precisá-lo. Sei que se desprendeu de nossas vidas como pecúnia daquele que deve. E, enquanto correu para o nada, eu estive imóvel, retendo minha imaginação, guardando-a em único recipiente, esquecendo-me que deveria seguir ilimitada, vaporosa. Eu havia interrompido meu pulso, sentenciado-me à sucumbência. Cala-se quando se descobre menor. O amor é este entendimento.
Pavorosamente, um dia, exibida ao sol, estava a minha sombra. Os olhos estrangulados, a pele coberta por veste hirsuta, o sangue secando em sua boca arregalada. Materializada pelo toque obsceno da morte. Trazida a meu testemunho, nua, desmascarada. Vendo-a assim, tão improvável, compreendi que a melhor maneira de amar era de lá, de trás da janela.
NR: Conto extraído do livro "O fio de Cloto" (Ed. Ícone. 2004).
* Bacharel em Direito, mestranda da FFLCH (USP), escritora, autora de “O Fio de Cloto”, livro de contos prefaciado por Bruno Fregni Basseto, grande filólogo e vencedor do Prêmio Jabuti. Publicou crônicas no “Jornal das Artes” e artigos em várias revistas acadêmicas.
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