quarta-feira, 30 de dezembro de 2009











Aurinha canta, grita. A vizinhança agradece. É o coco de praia...

* Por Marco Albertim

E
la é negra, tem os cabelos esvoaçantes como convém a toda coquista; a voz é rascante, convincente. Não se queixa de virar a noite puxando sambadas. No batismo, puseram-lhe Áurea da Conceição de Assis, mas é conhecida como Aurinha do Coco; do coco de raízes, de Xambá, de praia, de roda, de embolada, de umbigada. Ainda menina, no Amaro Branco, em Olinda, aprendeu a dar as boas-vindas aos mestres pescadores nas rodas de coco. Quando a pesca era farta, então... Logo lhe descobriram o dote da voz. Aos 15 anos, integrou os corais São Pedro Mártir, de Olinda; e o Madrigais, de Recife. Não se conformou no diapasão clerical, inda que no abrigo de uma imagem barroca de santo. Foi para o Largo do Amparo, encontrou-se com Selma Ferreira da Silva, a Selma do Coco. Apaixonou-se por Zezinho, filho de Selma. Viveu treze anos com ele, teve duas filhas. Lembrou-se das primeiras coquistas que lhe ensinaram os ritmos: Ana Lúcia, Margarida; mas a que mais povoa seu imaginário popular é a negra Jovelina, cuja profissão não se lembra mais. Aurinha largou Selma aos 35 anos, para formar sua própria banda, a Quebra-Coco. Durou seis meses, mudou os integrantes e o nome. Aurinha tem 58 anos com forças suficientes para fazer sobreviver, como mestra, o grupo Rala-Coco.

“Quando resolvi criar minha banda, Selma não gostou. Disse que era inveja... Eu fiquei com tanta raiva que pensei em me vingar. Fui dormir e tive uma ideia: Eu vou fazer um coco pra Selma, vou dar a resposta a ela cantando!

“Sua mãezinha fez
Tanta maldade comigo
Será... será
Que eu mereço esse castigo?
Dancei muita gafieira
Dancei o regae
E o baião
Até dancei ciranda
Com o copo na mão
Não tenho inveja de nada
Gosto mesmo é de cantar
Cantando coco de roda
Até o dia clarear

“Mas ela não entendeu. Ela só veio entender numa entrevista que eu dei na televisão. Continuo gostando dela, porque ela é minha mestra, minha rainha. Eu venho dela! Hoje ela dá a maior força ao meu trabalho.”

Aurinha tem dois cedês gravados com o patrocínio da Chesf. Considera o percussionista Naná Vasconcelos seu padrinho. Tanto Naná quanto Alceu Valença participaram da gravação dos dois. “Naná faz percussão até com a boca!” – ela reforça, como se o artista estivesse de seu lado, seguindo-a no ritmo.”Aurinha roda a saia em todos os sotaques do coco”, depõe o próprio Naná, enumerando os vários gêneros do ritmo. Ela mora num beco estreito que tem o nome de um coronel desconhecido. A distância paralela das casas é de apenas três metros. Quando tem apresentação, ensaia no fim da tarde. Sem abdicar do ofício de mestre, junta-se a Valéria, 40 anos, vocalista que faz o ganzá chorar; Daina, 25, vocalista; Jaene, 26, também do coral; Andreza, 28, coral e percussionista; Kauã, 19, caixa; Bala, 28, congas; Denis, 20, alfaia; Diego, 21, percussão e produção; Wellington, 33, ganzá. Cantando, Aurinha dirige-se a Valéria, “porque ela é a que tem mais experiência e canta na Orquestra Popular da Bomba do Hemetério!” Ninguém conheceu o coronel cujo nome está na placa da rua, mas todos sabem que ali é o beco do coco de roda. A artista não se preocupa nem com o bêbado que se equilibra mal descendo a ladeira, junta-se ao coral e dança num passo trôpego. Ela ri, pede que ele se sente no batente da casa, enquanto a vizinhança, esquecida do aparelho de rádio num canto de cada sala, ouve-a cantando o coco de raiz, a variação da preferência de Aurinha. Escolhida entre os 24 artistas selecionados para se apresentar na Feira de Música, mal esconde a vaidade para dizer que o figurino de toda a banda foi desenhado pela estilista Sara Paixão, que a acompanha “há um ano e meio.”

O segundo cedê tem o título de Seu grito, e critica a violência sobre as mulheres:

Seu grito silenciou
Lá no alto em Olinda
Era uma mulher tão linda
Que a natureza criou

A dois quarteirões de sua casa, mora Selma do coco. Com 79 anos, Selma não conversou com a reportagem porque se deitara após dilatar as pupilas com o médico oftalmologista. O filho, Zezinho, ex-marido de Aurinha, diz que a mãe “é comendadora da cultura”, honraria concedida pelo Ministério da Cultura, e sobrevive com os 750 reais mensais “porque consta como patrimônio vivo da cultura.” O benefício é concedido pela Fundarpe. Zezinho tem 51 anos, segue a mãe nas poucas apresentações do grupo. Queixa-se de que a banda é pouco chamada para shows. “Qualquer dia eu vou criar a minha própria banda”, desabafa. Selma teve 14 filhos; Zezinho é o único vivo.
Enquanto isso, do beco de Aurinha, ouve-se...

“Sua mãezinha fez
Tanta maldade comigo...”

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

2 comentários:

  1. Que essas pessoas que resgatam e perpetuam
    a cultura do país, se multipliquem em voz
    música e dança.
    Abraços e Feliz Ano Novo.

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  2. Bom e necessário registro, Marco Albertim. Se um escritor da aldeia não falar, ninguém fala.

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