domingo, 27 de dezembro de 2009




O cego

Por D. H. Lawrence

Isabel Pervin estava à escuta de dois sons: do som das rodas na estrada, lá fora, e do rumor dos passos do marido, no vestíbulo. O seu amigo mais velho e estimado, um homem que parecia quase indispensável à sua vida, devia chegar naquele anoitecer chuvoso de fins de novembro. A carripana tinha ido buscá-lo à estação. E o marido, que tinha perdido a vista na Flandres e apresentava na fronte uma cicatriz que o desfigurava, devia entrar em casa, vindo dos barracões.

Fazia agora um ano que regressara a casa, completamente cego. E, contudo, tinham sido muito felizes. A granja era propriedade de Maurício. Na parte traseira ficava a quinta com edifícios, onde os Wernhams, que viviam desse lado, trabalhavam como quinteiros. Na bonita residência da frente vivia Isabel com o marido. Ambos tinham passado quase inteiramente sós, desde que ele fora ferido. Conversavam, cantavam e liam juntos, numa esplêndida e inefável intimidade. Depois, satisfazendo um velho interesse, ela fazia a crítica de livros para um jornal escocês, e ele ocupava-se bastante da herdade. Embora privado da vista, discutia tudo com Wernham e fazia também muito trabalho por ali – trabalho miúdo, é certo, mas que lhe dava satisfação. Mungia as vacas, transportava para dentro os baldes, movia a desnatadeira e tratava dos porcos e cavalos. A vida era ainda bem cheia e estranhamente serena para o cego, pacificado pela paz quase incompreensível do contato imediato com as coisas, nas trevas. Na mulher possuía então um mundo completo, rico, real e invisível.

Eram felizes, de uma maneira nova e vaga. E ele nem sequer lamentava a perda da vista, nesses tempos de sombria, palpável alegria. Inflamava-lhe a alma uma suave exultação.

Mas à medida que o tempo se escoava, acontecia por vezes que este precioso encantamento lhes fugia. Algumas vezes, depois de meses desta intensidade, uma sensação de peso se apoderava de Isabel, um cansaço, um terrível tédio, naquela casa silenciosa a que conduzia uma dupla colunada de pinheiros alterosos. Então julgava que ia enlouquecer, pois não podia suportar tal coisa. Outras vezes, acometiam-no devastadores acessos de depressão, que pareciam ir destruir todo o seu ser. Era pior do que a depressão – era um sofrimento sombrio em que toda a sua vida se transformava numa tortura para ele e a sua presença se tornava insuportável para a mulher. A esta, um pavor lhe penetrava até às raízes da alma, quando chegavam estes dias sombrios. Numa espécie de pânico, procurava então consubstanciar-se ainda mais com o marido. E forçava a velha satisfação e alegria espontânea a continuar. Mas o esforço que isso lhe custava era quase insustentável. Sabia que o não podia aguentar. Sentia que essa tensão lhe iria arrancar gritos, e daria tudo para o evitar. Ansiava por possuir totalmente o marido; dava-lhe uma alegria desordenada tê-lo inteiramente para si. E contudo, quando de novo ele se deixava apoderar por um sofrimento sombrio e maciço, não podia suportá-lo, não podia suportar-se a si própria. Desejava então desaparecer de vez da face da terra, tudo menos viver a tal custo.

Atordoada, procurava então uma saída. Convidava pessoas amigas, procurava dar-lhe qualquer nova ligação com o mundo exterior. Mas de nada valia. Depois de toda a sua alegria e sofrimento, depois do seu sombrio, do seu longo ano de cegueira, solidão e indizível proximidade, as outras pessoas pareciam-lhes, a ambos, superficiais, tagarelas, bastante impertinentes. A tagarelice superficial parecia-lhes balofa. Ele ficava impaciente e irritado, ela cansada. E então recaíam na solidão, pois a preferiam.

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