Joselita
* Por
Risomar Fasanaro
Ela se chamava Joselita, e
trabalhava em nossa casa quando minha mãe era viva. Tinha vindo do
interior da Bahia. Estava com mais de cinquenta anos e era uma
pessoa aparentemente dócil, mas fazia o que bem queria e entendia.
Curiosíssima, ficava às
vezes encostada ao umbral da porta um tempão, ouvindo calada o que
conversávamos. Não queria nunca perder nada das conversas.
Se o telefone tocava e eu
atendia, quando desligava, ela perguntava: quem
era? O que ele (a) queria? E
dava palpites, sobre namoros, amigos, nada passava a ela
despercebido.
O que mais me chamava a
atenção eram seus olhos. De uma tristeza sem fim. Só em duas
pessoas vi olhos com tamanha tristeza: nela e na mãe de um
guerrilheiro assassinado pela ditadura de 64.
Tenho um amigo muito
brincalhão, Carlos César, que atualmente mora em Dourados, MS, pois
César achou de fazer amizade com Joselita por telefone. Jamais a
conheceu pessoalmente, porque quando vinha à minha casa, era em dias
que ela não se encontrava.
Mas não sei por que razão,
ele achou de dizer a ela que era padre. E quando eu voltava do
colégio onde dava aulas (o salário era tão mísero que até hoje
prefiro usar o verbo dar ao lecionar), mas como ia contando, ela me
passava os recados: o
padre ligou.
Que padre, Joselita? Eu não
tenho amizade com nenhum padre...E ela calmamente dizia: era
o padre sim. Ele disse pra dizer a você que era pra você não se
esquecer de ir à missa das sete hoje à noite. Demorou
para eu descobrir quem era o tal padre. Mas descobri.
Um dia ele ligou e no final
pediu: chama a Joselita. Chamei, os dois conversaram um pouco e vi
quando ela deixou o telefone sobre a mesinha, foi até a cozinha,
voltou com um copo d’água, ajoelhou-se próximo ao telefone e
começou a rezar.
Perguntei: o que é isso,
Joselita? E ela: o
padre me mandou rezar... E
quase diariamente os dois repetiam aquele ritual: ela com um copo
d’água na mão, rezando um Pai Nosso, uma ave Maria...
Tentei interferir naquela
“amizade”: Joselita, não faça o que esse padre manda, deixa ele
pra lá... E foi como se eu cometesse uma heresia: não,
Rozomar (foi assim
que ela me chamou a vida toda, durante anos e anos de convivência)
eu tenho de
obedecer, ele é um padre.
Mas Joselita, ele não é padre nenhum... E ela me olhava triste e
horrorizada: posso
fazer isso não Rosomar, Deus pode me castigar... Deus
não castiga ninguém, Joselita! Castiga sim, Rozomar...
Uma tarde cheguei e ela me
passou o recado: Rosomar,
o padre disse que era pra você ir hoje à noite e levar a sanfona,
pra tocar na missa das sete... Mas
Joselita, você não está vendo que isso não existe? Que eu não
toco sanfona? E ela, Ah...num
sei não... Ele disse que era pra você levar a sanfona. Tô dando o
recado...
Acontece que na adolescência
estudei harmônica. Cheguei a tocar algumas composições, mas quando
a literatura me atacou, abandonei o instrumento e passei a viver
lendo. Meu amigo se aproveitava dessa minha passagem pela música
para explorá-la.
Como empregada doméstica, ela
era incrível. Conseguia guardar o livro que eu estava lendo, na
gaveta das camisetas. E só depois de eu procurar horas, é que de
repente encontrava. Um texto que eu estivesse escrevendo, ela
guardava cuidadosamente entre os lençóis. E tenho certeza de que
não fazia aquilo por maldade, mas por achar que nesse mundo de Deus
tudo é misturado mesmo, e nada tem lugar marcado, só aquele que um
dia a gente vai ocupar para sempre.
Diariamente ela perdia os
chinelos do meu pai. Foram algumas das poucas ocasiões em que vi meu
pai mal-humorado: Nena (era minha mãe), Joselita perdeu de novo meus
chinelos? Mas todo dia ela muda meus chinelos de lugar?
Às vezes os chinelos era
reencontrados no quintal, ou no quarto dos meus irmãos. Sempre em
algum lugar que não era o deles. Viver com Joselita era sempre uma
surpresa.
Um dia resolvi “entrevistar”
Joselita. Eu precisava saber a história daquela pessoa tão confusa,
mas que ao mesmo tempo me encantava. Na nossa casa havia uma mesa
enorme, de jacarandá que tínhamos trazido do Recife, ainda do tempo
em que “festejavam o dia dos meus anos, eu era feliz e ninguém
estava morto” como disse meu amado Fernando Pessoa.
Lembro-me como se fosse hoje:
ela sentada em uma cabeceira da mesa e eu na outra. Quis olhá-la de
frente, e ela começou a contar: ainda mocinha morava em um sítio,
no interior da Bahia, e era noiva de um rapaz. Ela o adorava, foi
ele o grande amor de sua vida, me disse, já se preparavam para
casar, quando um dia o encontraram, pendendo de uma árvore,
enforcado. “As
desde esse dia, cabô tudo na minha vida...
Puxou uma ponta do avental, e enxugou aqueles olhos que eram o que de
mais esplêndido havia naquele rosto.
Levantei, e até hoje me dou
conta, da enorme distância que naquele momento havia entre uma
ponta da mesa e a outra. Era como se meus pés não chegassem até
ela com a urgência necessária. Abracei-a, e ficamos as duas
chorando. E hoje me dou conta de que não há nada mais forte neste
mundo do que duas mulheres chorando juntas, a perda de alguém.
Um dia funcionários da
prefeitura vieram cortar uma árvore em frente à nossa casa porque
ela estava muito doente e corria o risco de cair sobre alguém ou
algum carro. Minha mãe pediu à Joselita que levasse café aos
homens. Pela primeira vez a vi ríspida. Não
vou! Minha mãe
repetiu: Joselita, vai levar café aos homens, eles estão aí
trabalhando...E ela: Não
vou! Não vou levar café pra homem nenhum! Tentei
persuadi-la: mas Joselita, mamãe está mandando! Ela não respondeu
nada. Foi até o quarto dela e lá ficou. No dia seguinte não voltou
a trabalhar, nem no outro, nem no outro, e nunca mais apareceu. Até
hoje o mistério permanece. Jamais soubemos o que a motivou a tomar
aquela atitude.
Mas ia me esquecendo de dizer:
foi em uma antevéspera de Natal que Joselita foi embora. Foi embora
para sempre.
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e
escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra
vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto
por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro.
Final jamais esperado. Estranha Joselita.
ResponderExcluir