sábado, 3 de fevereiro de 2018


Joselita


* Por Risomar Fasanaro



Ela se chamava Joselita, e trabalhava em nossa casa quando minha mãe era viva. Tinha vindo do interior da Bahia. Estava com mais de cinquenta anos e era uma pessoa aparentemente dócil, mas fazia o que bem queria e entendia.

Curiosíssima, ficava às vezes encostada ao umbral da porta um tempão, ouvindo calada o que conversávamos. Não queria nunca perder nada das conversas.

Se o telefone tocava e eu atendia, quando desligava, ela perguntava: quem era? O que ele (a) queria? E dava palpites, sobre namoros, amigos, nada passava a ela despercebido.

O que mais me chamava a atenção eram seus olhos. De uma tristeza sem fim. Só em duas pessoas vi olhos com tamanha tristeza: nela e na mãe de um guerrilheiro assassinado pela ditadura de 64.

Tenho um amigo muito brincalhão, Carlos César, que atualmente mora em Dourados, MS, pois César achou de fazer amizade com Joselita por telefone. Jamais a conheceu pessoalmente, porque quando vinha à minha casa, era em dias que ela não se encontrava.

Mas não sei por que razão, ele achou de dizer a ela que era padre. E quando eu voltava do colégio onde dava aulas (o salário era tão mísero que até hoje prefiro usar o verbo dar ao lecionar), mas como ia contando, ela me passava os recados: o padre ligou.

Que padre, Joselita? Eu não tenho amizade com nenhum padre...E ela calmamente dizia: era o padre sim. Ele disse pra dizer a você que era pra você não se esquecer de ir à missa das sete hoje à noite. Demorou para eu descobrir quem era o tal padre. Mas descobri.

Um dia ele ligou e no final pediu: chama a Joselita. Chamei, os dois conversaram um pouco e vi quando ela deixou o telefone sobre a mesinha, foi até a cozinha, voltou com um copo d’água, ajoelhou-se próximo ao telefone e começou a rezar.

Perguntei: o que é isso, Joselita? E ela: o padre me mandou rezar... E quase diariamente os dois repetiam aquele ritual: ela com um copo d’água na mão, rezando um Pai Nosso, uma ave Maria...

Tentei interferir naquela “amizade”: Joselita, não faça o que esse padre manda, deixa ele pra lá... E foi como se eu cometesse uma heresia: não, Rozomar (foi assim que ela me chamou a vida toda, durante anos e anos de convivência) eu tenho de obedecer, ele é um padre. Mas Joselita, ele não é padre nenhum... E ela me olhava triste e horrorizada: posso fazer isso não Rosomar, Deus pode me castigar... Deus não castiga ninguém, Joselita! Castiga sim, Rozomar...

Uma tarde cheguei e ela me passou o recado: Rosomar, o padre disse que era pra você ir hoje à noite e levar a sanfona, pra tocar na missa das sete... Mas Joselita, você não está vendo que isso não existe? Que eu não toco sanfona? E ela, Ah...num sei não... Ele disse que era pra você levar a sanfona. Tô dando o recado...

Acontece que na adolescência estudei harmônica. Cheguei a tocar algumas composições, mas quando a literatura me atacou, abandonei o instrumento e passei a viver lendo. Meu amigo se aproveitava dessa minha passagem pela música para explorá-la.

Como empregada doméstica, ela era incrível. Conseguia guardar o livro que eu estava lendo, na gaveta das camisetas. E só depois de eu procurar horas, é que de repente encontrava. Um texto que eu estivesse escrevendo, ela guardava cuidadosamente entre os lençóis. E tenho certeza de que não fazia aquilo por maldade, mas por achar que nesse mundo de Deus tudo é misturado mesmo, e nada tem lugar marcado, só aquele que um dia a gente vai ocupar para sempre.

Diariamente ela perdia os chinelos do meu pai. Foram algumas das poucas ocasiões em que vi meu pai mal-humorado: Nena (era minha mãe), Joselita perdeu de novo meus chinelos? Mas todo dia ela muda meus chinelos de lugar?

Às vezes os chinelos era reencontrados no quintal, ou no quarto dos meus irmãos. Sempre em algum lugar que não era o deles. Viver com Joselita era sempre uma surpresa.

Um dia resolvi “entrevistar” Joselita. Eu precisava saber a história daquela pessoa tão confusa, mas que ao mesmo tempo me encantava. Na nossa casa havia uma mesa enorme, de jacarandá que tínhamos trazido do Recife, ainda do tempo em que “festejavam o dia dos meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto” como disse meu amado Fernando Pessoa.

Lembro-me como se fosse hoje: ela sentada em uma cabeceira da mesa e eu na outra. Quis olhá-la de frente, e ela começou a contar: ainda mocinha morava em um sítio, no interior da Bahia, e era noiva de um rapaz. Ela o adorava, foi ele o grande amor de sua vida, me disse, já se preparavam para casar, quando um dia o encontraram, pendendo de uma árvore, enforcado. “As desde esse dia, cabô tudo na minha vida... Puxou uma ponta do avental, e enxugou aqueles olhos que eram o que de mais esplêndido havia naquele rosto.

Levantei, e até hoje me dou conta, da enorme distância que naquele momento havia entre uma ponta da mesa e a outra. Era como se meus pés não chegassem até ela com a urgência necessária. Abracei-a, e ficamos as duas chorando. E hoje me dou conta de que não há nada mais forte neste mundo do que duas mulheres chorando juntas, a perda de alguém.

Um dia funcionários da prefeitura vieram cortar uma árvore em frente à nossa casa porque ela estava muito doente e corria o risco de cair sobre alguém ou algum carro. Minha mãe pediu à Joselita que levasse café aos homens. Pela primeira vez a vi ríspida. Não vou! Minha mãe repetiu: Joselita, vai levar café aos homens, eles estão aí trabalhando...E ela: Não vou! Não vou levar café pra homem nenhum! Tentei persuadi-la: mas Joselita, mamãe está mandando! Ela não respondeu nada. Foi até o quarto dela e lá ficou. No dia seguinte não voltou a trabalhar, nem no outro, nem no outro, e nunca mais apareceu. Até hoje o mistério permanece. Jamais soubemos o que a motivou a tomar aquela atitude.

Mas ia me esquecendo de dizer: foi em uma antevéspera de Natal que Joselita foi embora. Foi embora para sempre.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro.

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