sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018


O Crucificado

* Por Emanuel Medeiros Vieira

(Memória)

Terá valido a pena o sacrifício do Crucificado? Outrora, agora – sempre?

Na sala não muito grande, papéis na mesa. Havia uma “cadeira do dragão” (lembrava os antigos assentos de barbeiros, pesados e de madeira, com uma cobertura de zinco, ligada a um regulador de voltagem): sentiam-se os choques no corpo inteiro  -  era muito fácil um cardíaco morrer ali).

O instrumento era mais utilizado, quando o interrogado não falava “apenas” com choques elétricos nas mãos, no pênis etc.). Passara o ritual (para mim foi o primeiro) dos choques nas mãos, nos ouvidos e o “telefone”: tapas com as mãos abertas no dois ouvidos). ´Tímpanos eram rompidos" ali.

O militar sem farda olha o Crucifixo na parede. E diz: “Pede para Ele”. Olho: o militar sem farda, o Crucifixo. Pede para Ele” – insistiu. Ele cortava as palavras, abolia sujeitos, predicados, verbos: só interessava a eficácia (a lógica do Processo). O homem sem farda queria que eu apelasse ao Crucificado para que a “cadeira do dragão” não fosse ligada – que fosse cessada a tortura (mas essa palavra eles não gostavam de usar).

Ele Te Salvará?”, perguntou com sorriso cínico. Cristo quieto na parede.
O homem musculoso ligou a máquina: gritos, mais gritos – só gritos. Ouviam-se berros vindos de salas vizinhas. As celas eram no térreo. Um minuto (creio) parecia uma hora, ou a eternidade toda. (Eu sabia: deste lugar-comum, eu não conseguiria escapar). Por que não morrer?

Eram equipes diversas: entrava uma, saía outra. Eles enxugavam-se com toalhas. Quem me interrogava agora tinha cabelo escovinha. Quanto tempo aguentarei? O Crucificado continuava em silêncio. Escutei barulho de carros, pneus rangendo. Alguém – me informaram – havia morrido. O médico calculara mal.

Havia um médico e o chamavam de vez em quando. Ele pegava um aparelho e, curtamente, dizia: “Esse aguenta mais um pouco”. Esse está no limite”. Um guarda no térreo (eu estava no primeiro andar) berrava eufórico: gol do Corinthians.

Operação Bandeirantes OBAN (Operação Bandeirantes), Rua Tutóia, Bairro Paraíso, São Paulo. Departamento de Operações de Informação (Doi). Centro de Operações de Defesa Interna (Codi). Sim: o bairro chamava-se “Paraíso”.

Havia alguns homens com fardas, fios ligados e aquela cadeira enorme.
(Não, não era tão grande assim. Agora me parece. Faz 48 anos). Um cardíaco já morreu aqui”, contou chefe deu uma equipe. A quem mais odiavam?

Prestes e Lamarca: vieram de suas entranhas – o Exército. Textos meus em cima da mesa: havia um panfletário e violento texto meu contra a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto (1950-1968), assassinado pela Ditadura no “Calabouço”, no Rio de Janeiro. Escrito no jornal do “Centro Acadêmico André da Rocha” – Faculdade de Direito da UFRGS. Eles só pediam um nome: de alguém que estava fugindo para o Uruguai, mas eu calculava: o companheiro ainda não havia chegado lá.

Era preciso aguentar mais um pouco. Não sei se conseguiria – estava um bagaço. Pensava: eu já estava morto? Me levaram para a cela, sentia-me cego, sangue escorrendo por todo o lado e – sempre há um pior que o outro – um agente jogou um balde d’água no meu corpo.

Havia na cela, mais uns sete ou oito presos. Alguém improvisou um curativo para mim. Queria ter guardado o seu nome. Na transferência da OBAN para o DOPS – 19 de dezembro de 1970 , pessoas faziam compras de natal. Saiam da frente”, são terroristas”, gritavam os agentes, e as pessoas nos olhavam horrorizadas.

Um agente (naquelas caminhonetes), no transcurso da OBAN para o DOPS, disse: “Não temos nada contra vocês. Se a revolução de vocês ganhar, pagando bem, a gente bate também naqueles que vocês mandarem”. Acreditem: certa vez, quando estava sendo torturado, lembrei-me de T.S. Eliot (1888-1965): (... ) “Mas aquilo que apenas vive/Pode apenas morrer (...).

Eu sei: lembrar-se de versos na hora da pancada, soará inverossímil. Mas quero  o "sumo do sumo": a verdade. (Mas foi o que me "salvou".): a Verdade, os Versos? Certamente, os dois.

O Crucificado? Eu não sei se Ele ainda está lá, se existe aquela sala, se aquilo tudo foi demolido, se as pessoas que estavam comigo na cela já morreram, como os torturadores – para que serviria aquela construção agora? Uma "Delegacia de Polícia?

Pude dizer o nome que eles queriam: ele já havia chegado o Uruguai. Como calculei? A gente sabia. Para eles, eu agora era um trapo inútil, mas com processo nas costas,e eu precisava continuar a viver. Repito: faz 48 anos.

(Anos mais tarde, ouvi Vandré e Gardel, lembrando-me daqueles dias de minha juventude (a minha: com 25 anos). Não sei  por que resolvi ouvir Gardel? O Crucificado? Perdi-o de vista. Talvez esteja numa igreja velha.

NOTA:- Em memória do José: meu irmão e padrinho de batismo. Em memória de Luiz Travassos (com quem tentamos e outros éticos companheiros), refundar ou deixar as sementes de um Projeto Humanista para o Brasil. Para os todos os amigos que, em maio de 1968, (há 50 anos!) estavam nas ruas de maio,  com flores e barricadas. Perdemos? Mas a "promessa sagrada" era não nos "demitirmos" nunca.


* Romancista, contista, novelista e poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis – ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre outros.



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