O
Crucificado
* Por
Emanuel Medeiros Vieira
(Memória)
Terá
valido a pena o sacrifício do Crucificado? Outrora, agora –
sempre?
Na
sala não muito grande, papéis na mesa. Havia uma “cadeira do
dragão” (lembrava os antigos assentos de barbeiros, pesados e de
madeira, com uma cobertura de zinco, ligada a um regulador de
voltagem): sentiam-se os choques no corpo inteiro - era
muito fácil um cardíaco morrer ali).
O
instrumento era mais utilizado, quando o interrogado não falava
“apenas” com choques elétricos nas mãos, no pênis etc.).
Passara o ritual (para mim foi o primeiro) dos choques nas mãos, nos
ouvidos e o “telefone”: tapas com as mãos abertas no dois
ouvidos). ´Tímpanos eram rompidos" ali.
O
militar sem farda olha o Crucifixo na parede. E diz: “Pede para
Ele”. Olho: o militar sem farda, o Crucifixo. “Pede
para Ele” – insistiu. Ele cortava as palavras, abolia sujeitos,
predicados, verbos: só interessava a eficácia (a lógica do
Processo). O homem sem farda queria que eu apelasse ao Crucificado
para que a “cadeira do dragão” não fosse ligada – que fosse
cessada a tortura (mas essa palavra eles não gostavam de usar).
“Ele
Te Salvará?”, perguntou com sorriso cínico. Cristo quieto na
parede.
O
homem musculoso ligou a máquina: gritos, mais gritos – só gritos.
Ouviam-se berros vindos de salas vizinhas. As celas eram no térreo.
Um minuto (creio) parecia uma hora, ou a eternidade toda. (Eu sabia:
deste lugar-comum, eu não conseguiria escapar). Por que não morrer?
Eram
equipes diversas: entrava uma, saía outra. Eles enxugavam-se com
toalhas. Quem me interrogava agora tinha cabelo escovinha. Quanto
tempo aguentarei? O Crucificado continuava em silêncio. Escutei
barulho de carros, pneus rangendo. Alguém – me informaram –
havia morrido. O médico calculara mal.
Havia
um médico e o chamavam de vez em quando. Ele pegava
um aparelho e, curtamente, dizia: “Esse aguenta mais um pouco”.
“Esse
está no limite”. Um guarda no térreo (eu estava no primeiro
andar) berrava eufórico: gol do Corinthians.
Operação
Bandeirantes OBAN (Operação Bandeirantes), Rua Tutóia, Bairro
Paraíso, São Paulo. Departamento de Operações de Informação
(Doi). Centro de Operações de Defesa Interna (Codi). Sim: o bairro
chamava-se “Paraíso”.
Havia
alguns homens com fardas, fios ligados e aquela cadeira enorme.
(Não,
não era tão grande assim. Agora me parece. Faz 48 anos). “Um
cardíaco já morreu aqui”, contou chefe deu uma equipe. A quem
mais odiavam?
Prestes
e Lamarca: vieram de suas entranhas – o Exército. Textos meus em
cima da mesa: havia um panfletário e violento texto meu contra
a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto (1950-1968),
assassinado pela Ditadura no “Calabouço”, no Rio de Janeiro.
Escrito no jornal do “Centro Acadêmico André da Rocha” –
Faculdade de Direito da UFRGS. Eles só pediam um nome: de alguém
que estava fugindo para o Uruguai, mas eu calculava: o
companheiro ainda não havia chegado lá.
Era
preciso aguentar mais um pouco. Não sei se conseguiria – estava um
bagaço. Pensava: eu já estava morto? Me levaram para a cela,
sentia-me cego, sangue escorrendo por todo o lado e – sempre há um
pior que o outro – um agente jogou um balde d’água no meu corpo.
Havia
na cela, mais uns
sete ou oito presos. Alguém improvisou um curativo para mim. Queria
ter guardado o seu nome. Na transferência da OBAN para o DOPS – 19
de dezembro de 1970 , pessoas faziam compras de natal. “Saiam
da frente”, são terroristas”, gritavam os agentes, e as pessoas
nos olhavam horrorizadas.
Um
agente (naquelas caminhonetes), no transcurso da OBAN para o DOPS,
disse: “Não temos nada contra vocês. Se a revolução de vocês
ganhar, pagando bem, a gente bate também naqueles que vocês
mandarem”. Acreditem: certa vez, quando estava sendo torturado,
lembrei-me de T.S. Eliot (1888-1965): (... ) “Mas aquilo que apenas
vive/Pode apenas morrer (...).
Eu
sei: lembrar-se de versos na hora da pancada, soará inverossímil.
Mas quero o "sumo do sumo": a verdade. (Mas foi o que
me "salvou".): a Verdade, os Versos? Certamente, os dois.
O
Crucificado? Eu não sei se Ele ainda está lá, se existe
aquela sala, se aquilo tudo foi demolido, se as pessoas que estavam
comigo na cela já morreram, como os torturadores – para que
serviria aquela construção agora? Uma "Delegacia de
Polícia?
Pude
dizer o nome que eles queriam: ele já havia chegado o Uruguai. Como
calculei? A gente sabia. Para eles, eu agora era um trapo inútil,
mas com processo nas costas,e eu precisava continuar a viver. Repito:
faz 48 anos.
(Anos
mais tarde, ouvi Vandré e Gardel, lembrando-me daqueles dias de
minha juventude (a minha: com 25 anos). Não sei por que
resolvi ouvir Gardel? O Crucificado? Perdi-o de vista. Talvez esteja
numa igreja velha.
NOTA:-
Em
memória do José: meu irmão e padrinho de batismo.
Em memória de Luiz Travassos (com quem tentamos e outros éticos
companheiros), refundar ou deixar as sementes de um Projeto
Humanista para o Brasil. Para os todos os amigos que, em maio de
1968, (há 50 anos!) estavam nas ruas de maio, com flores
e barricadas. Perdemos? Mas a "promessa sagrada" era não
nos "demitirmos" nunca.
*
Romancista, contista, novelista e poeta catarinense, residente em
Brasília, autor de livros como “Olhos azuis – ao sul do
efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo
nos domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava
simpósios”, entre outros.
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