Lula, a lei e a justiça
* Por Urariano Mota
Sem dar os nomes do PT e do presidente Lula, pois assim manda a elipse, ou a hipocrisia dos discursos dirigidos, assim falou nesta semana a presidenta do STF, ministra Carmem Lúcia:
"Pode-se ser favorável ou desfavorável à decisão judicial pela qual se aplica o direito. Pode-se buscar reformar a decisão judicial pelos meios legais e nos juízes competentes. O que é inadmissível e inaceitável é desacatar a Justiça, agravá-la ou agredi-la. Justiça individual fora do direito não é Justiça, senão vingança ou ato de força pessoal".
Ela assim falou como se fosse para todos, quando na verdade se dirigia a Lula e a todos militantes de resistência ao golpe no Brasil. Se a sua fala ocorresse no paraíso bíblico, sem luta ou conflito entre o progresso e o atraso, longe deste 2018, deste Brasil real, nada republicano, talvez coubesse. Mas há uma característica no discurso da ministra que é um serio equívoco de advogados, juízes e autoridades judiciárias em geral. Trata-se da confusão, da mistura, entre Direito e Justiça.
Devia ser elementar, mas a miopia da formação dos causídicos passa ao largo deste básico: a Justiça é uma luta permanente da civilização, do progresso contra o atraso. Se assim não fosse, todo movimento dos abolicionistas, e de trabalhadores que se levantaram contra a opressão, e todo sacrifício de bravos levantados contra a tirania, toda a luta contra a Lei vigente seria “inadmissível e inaceitável”. Pela simples e inescapável razão que os seus objetivos não existiam no corpo do Direito da época. E, portanto, não seriam de Justiça. Pois a Justiça era o Direito e a Lei em santíssima trindade.
No entanto, os recados de perigoso conformismo da ministra foram espalhados como a vitória do justo sobre a anarquia. A revolta que não aceita a retirada da vida pública do maior líder popular da história do Brasil passa a ser um ato imoral, em princípio. No princípio também, porque se a militância e intelectuais não aceitam a sentença do tribunal, recebem a mão forte da ordem, o inferno pela lei, interpretada conforme a conveniência política do momento.
Logo depois do julgamento do recurso de Lula no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a militante Mara Loguércio divulgou esta reflexão do professor e jurista Lênio Luiz Streck:
“Há um momento do julgamento de Lula em que o presidente da turma diz: ‘Terminamos a primeira fase — a das sustentações orais. Faremos um intervalo de 5 minutos e, na volta, o relator lerá seu voto’. Ups. Ato falho? O relator lerá seu voto? E as sustentações? Lembro que, no julgamento mitológico de Orestes, os jurados não tinham o voto pronto. Cada um votou depois de ouvirem a defesa e a acusação. É incrível como, no Brasil, 2.500 anos depois, os votos vêm prontos e não levam em conta nada do que foi dito nas sustentações orais. Nem disfarçam. Afinal, por que manter, então, esse teatro, se a decisão está tomada?”
A decisão que se tomou foi noticiada como a expressão da Justiça, da Lei e do Direito. Mas o que vemos é a reação que marcha em ordem unida contra o povo brasileiro. Isso não é nem será o fim da nossa inteligência e sensibilidade. Escrevo estas linhas tendo na lembrança a morte de pessoas queridas, e elas me dizem, falam, exigem: escrevas o essencial, sem medo. Penso nessas pessoas enquanto vejo um povo a quem pretendem matar como gado que se arrasta para o matadouro. E a gente fica parecendo, a esta altura, que escreve por “vingança ou ato de força pessoal”, segundo sentenciam as plenas planas palavras da planura no poder. Então será melhor trazer “à baila” a luz de Tolstói no magnífico romance Ressurreição:
“-
Qual é o sentido da justiça?
-
A manutenção dos interesses de uma classe – responde Nekhliúdov.
- O
tribunal tem o único propósito de conservar a sociedade na situação
atual e para isso persegue e executa tanto aqueles que se encontram
acima do nível comum e querem elevá-lo, os chamados criminosos
políticos, como também aqueles que se encontram abaixo, os chamados
tipos criminosos…
-
Sempre digo aos senhores funcionários da magistratura – prosseguiu
o advogado – que não consigo vê-los sem me sentir grato, porque
se eu não estou na prisão, e o senhor também, e todos nós, é
apenas graças à bondade deles. Levar cada um de nós à privação
dos direitos particulares e a lugares não tão distantes é a coisa
mais fácil do mundo.
-
Mas se tudo depende do arbítrio do promotor e das pessoas que têm o
poder de aplicar ou não aplicar a lei, para que existe o tribunal?”
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa,
membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance
“Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário
amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O
Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
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