Poema denuncia os que enriqueciam com a
peste
A pandemia de peste bubônica que, a partir de 1347 assolou
quase toda a Europa, matando milhões e milhões de pessoas, transformando
cidades populosas em povoações fantasmas, devastou, também, a Inglaterra,
levando pânico e morte aos seus habitantes. Ao contrário do que aconteceu,
porém, no território que mais tarde iria constituir a Itália atual (e
principalmente Florença), que tiveram escritores notáveis registrando os vários
aspectos desse flagelo (como o historiador Giovanni Villani, o
proto-ficcionista Giovanni Boccaccio, com seu Decamerão e o poeta Francesco
Petrarca, com seu “Cancioneiro”), poucos textos daquela época chegaram até nós.
A rigor, em minhas pesquisas, localizei apenas dois, ambos de poetas e os dois
apresentando a peste “apenas” como panos de fundo de suas produções. Refiro-me
a William Langman (ou Langland, como muitos o identificam) e Geoffrey Chaucer.
O primeiro, parece ser o mais antigo, mas que se celebrizou
por ser considerado o pioneiro na menção de um personagem lendário, cuja
existência real é debatida há séculos, até hoje, no caso o herói-bandido ou
bandido-heroi como queiram, Robin Hood. Chaucer, por seu turno, é tido e havido
como o maior poeta da Inglaterra medieval. Pelo menos, é o mais conhecido na
atualidade. Hoje, concentrarei meu foco em William Langman (ou Langland,
sabe-se lá). Se pouco, ou praticamente nada, se conhece desse poeta, o mesmo
não pode ser dito da obra que lhe é atribuída, o poema “Piers Plowman” (que
pode ser traduzido como “Pedro, o camponês”). Trata-se de um calhamaço de sete
mil versos. Ele “teria” sido composto em 1377. Tudo o que se refere a essa
figura tem que ser colocado no condicional, pela ausência de provas que definam
com rigor quem foi e o que fez (e, provavelmente, até se existiu).
Vamos supor, todavia, que tenha existido, que tenha sido de
fato autor do extensíssimo poema que lhe é atribuído e que seu nome verdadeiro
seja William Langman, para simplificar a análise. Como ressaltei antes, a peste
não é tratada especificamente por ele. Serve, somente, como pano de fundo, para
caracterizar a época a que o autor se refere. Os mais se de sete mil versos
exprimem uma busca espiritual e teológica do poeta, além de ostensiva
reivindicação social. O cenário que ele pinta é o de uma Inglaterra socialmente
convulsionada, dominada por um clero corrupto, caracterizada pela exploração
dos camponeses, que se rebelavam contra isso. Foi nesse contexto que se
mencionou a figura de Robin Hood, pretenso paladino dos explorados e
injustiçados, o tal que roubava dos ricos para distribuir aos pobres.
Conhecendo a natureza humana como se conhece (e no
comportamento básico, ele pouco, ou nada mudou), o poema reveste-se de rigorosa
verossimilhança. Ouso afirmar que é a lídima expressão da realidade de então, uma espécie
de “reportagem” medieval em versos. Ademais, não posso deixar de admirar (e de
concordar) com conclusões como esta, do poeta: “Tu és escravo, enquanto desejas
alimentos abundantes de outrem. É melhor comeres teu pão, que serás livre”. Outros
pontos que ficam explícitos entre tantos, são a generalizada desconfiança nos
médicos de então (a maioria, meros charlatães, que prescreviam poções inócuas,
a torto e a direito, sem saberem sequer por que o faziam), a desorganização do
trabalho agrícola por culpa da epidemia e a desavergonhada exploração de um
clero corrupto, cujo único deus, na verdade, era o dinheiro.
Um desses abusos, posto que não o único, era a venda de
indulgências, ou seja, o perdão de todos os pecados de quem se dispusesse a
pagar. A “escritura”, dessa “compra da redenção”, era a bula. E os que as
vendiam eram conhecidos como “buleiros”. Isso ocorria, na época, não somente na
Inglaterra, mas praticamente em toda a Europa. O poeta escreve, à certa altura,
referindo-se a determinada aldeia: “(...) Ali pregava um buleiro, como se fosse
um sacerdote. Exibia uma bula, com selos do bispo, e dizia que podia absolver a
todos da falsidade do jejum, das promessas quebradas e de todos os pecados. Os
ingênuos acreditavam e se consolavam com suas palavras. Achegavam-se do
buleiro, se ajoelhavam e beijavam a bula. Ele lhes fazia um sinal de
indulgência e aceitava, em troca do documento, anéis e broches, na ausência de
dinheiro. Assim, os camponeses entregavam o ouro para continuarem sendo,
impunemente, gulosos ou lascivos, ou ladrões. Se o bispo fosse venerável e
digno de seus dois ouvidos, não enviaria o seu selo para enganar as pessoas
(...)”.
E o poeta pondera: “(...) Talvez o bispo nem soubesse, mas o
buleiro pregava com o conhecimento do padre, repartindo com ele o que arrecadava,
que deveria beneficiar os pobres da paróquia caso não fosse desviado. Párocos e
padres queixavam-se ao bispo que as paróquias eram cada vez mais pobres, desde
o tempo da peste, para venderem Indulgências e assim viverem em Londres e
gozarem ali a doçura da vida, pois a riqueza é doce (...)”. Fico imaginando o
que ocorreria hoje caso sobreviesse uma pandemia mundial, neste mundo
globalizado, cuja forma de detenção, controle e eliminação fosse absolutamente
desconhecida. Não quero ser pessimista (pois esta não é minha índole), mas se
algo assim acontecesse, muitas e muitas pessoas, talveza milhões delas, julgando-se
invulneráveis e imortais, certamente explorariam, e com muito maior gana do que
na Idade Média, a desgraça alheia para enriquecer. Até porque, com a absurda
maior quantidade de habitantes agora, do que em 1347, há uma variedade quase
infinita de tipos, com extremos que vão desde os boníssimos que beiram a
santidade (cada vez em menor número) aos sumamente maldosos e corruptos,
ególatras e avarentos, que só adoram o próprio umbigo. Ou não?!!!
Boa leitura.
O Editor.
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