domingo, 2 de agosto de 2015

Um caso de amor – Parte I


* Por Pedro J. Bondaczuk


(Conto)

I

Theobaldo Miranda estava no topo do mundo. Seu mais recente romance, “Um caso de amor”, era o sucesso editorial da temporada. O livro era fenômeno de vendas e estava há já três meses na lista dos dez mais vendidos da revista Veja, subindo, de semana a semana, um novo degrau na colocação.

As críticas eram todas favoráveis e Theobaldo já nem estava dando conta de tantos compromissos. Eram organizadas, por exemplo, noites e mais noites de autógrafo, País afora, em Belém, Salvador, Recife, Brasília, Porto Alegre, Belo Horizonte e tantas outras cidades, que o veterano escritor até chegava a esquecer. Em São Paulo, esse tipo de promoção chegava às dezenas, sempre com enorme afluência de público nas livrarias em que ocorria.

Palestras em escolas, clubes e teatros Theobaldo fazia em profusão. Houve dia, até, de fazer três: uma de manhã, outra à tarde e outra à noite. Isso lhe rendia um bom dinheiro, é verdade, já que as apresentações não eram gratuitas, mas custavam, em média, R$ 500,00 aos interessados. Mas que eram cansativas, isso ninguém poderia negar. Apesar do alto preço que cobrava, porém, o veterano escritor continuava muito requisitado. Só não fazia mais palestras por absoluta falta de tempo.

Após sucessivos fracassos, Theobaldo, finalmente, saboreava o doce gosto do sucesso, da notoriedade e da fama com que tanto sonhara. Já participara de todos os programas imagináveis de entrevista na TV, em especial no do Jô Soares, tão procurado por escritores.

A nova editora cobrava-lhe, insistentemente, um novo livro, para aproveitar a maré favorável. Pudera! Com o volume de vendas de “Um caso de amor”, era o mínimo que poderia fazer. Theobaldo, por seu turno, respondia que já estava planejando novo romance, mas estava coisa nenhuma. Não tinha tempo para nada, nem para respirar. Sequer havia pensado num enredo a desenvolver.

“Quando tudo isso passar, vou para o Recife, para o apartamento do Geraldo, na Praia de Boa Viagem”, prometia a si próprio, lembrando-se do amigo recém incorporado ao seu círculo de amizades, sem que tivesse a mínima noção de quando isso ocorreria ou se viria, mesmo, a acontecer.

O sucesso do “Um caso de amor” despertou a atenção do público para os seus livros anteriores, notadamente para “Clarita”, que havia se constituído num monumental fracasso editorial, num encalhe para desesperar qualquer livreiro por mais sóbrio e comedido que fosse. Foi por causa desse vexame, aliás, que a editora que antes publicava seus contos e romances lhe dera o clássico “bilhete azul”.

Antes de ser rejeitado, porém, ouvira poucas e boas do proprietário. Agora Alípio (este é o seu nome) lhe fazia marcação cerrada, propondo novo e vantajoso contrato para pelo menos mais três livros. A caixa postal do celular de Theobaldo estava repleta de recados do desesperado editor, arrependido da precipitação em dispensar o veterano escritor.

“Clarita”, por exemplo, que havia permanecido encalhado por dois anos consecutivos, esgotou, em menos de um mês, por completo, a primeira edição. Não se encontrava um único e solitário volume, em livraria alguma, “nem mesmo para remédio”. Alípio queria, a todo o custo, reeditá-lo, mas para isso, precisava da autorização de Theobaldo. Este, no entanto, se fazia de difícil. Não queria conversa com quem o havia ignorado e, pior, enxotado, como a um cão sarnento, há somente seis meses.

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II

Seis meses antes do meteórico sucesso, Theobaldo Miranda vivia a pior crise da sua vida. Crise era pouco. Sentia-se, na verdade, no inferno, num interminavelmente fundo poço de desespero e de sucessivos fracassos. E estes eram tanto profissionais quanto (e principalmente) pessoais. “Desgraça pouca é bobagem”, dizia, então, aos seus botões.

Acabara de se divorciar, por exemplo, de Teresa, mulher que fora, por anos e anos, seu esteio, guarida, grande incentivadora e responsável por tudo o que de bom havia conseguido até então. Fora um processo difícil, tenso e doloroso para ambos, em que os dois saíram bastante feridos emocionalmente.

Ambos disseram, um ao outro, coisas que jamais pensariam em dizer a qualquer pessoa, mesmo ao pior dos inimigos. Faltou pouco, pouquíssimo até para que se engalfinhassem, se agredissem fisicamente ou para que fizessem algo muito pior. A tragédia pairou perigosamente no ar, mas milagrosamente não se consumou.

O amor mútuo, ao se transformar, subitamente em ódio (e nenhum dos dois saberia precisar em que momento isso ocorreu), multiplicou por mil esse sentimento ruim e danoso. Um passou a ser absolutamente insuportável ao outro. Só se encontravam, e esporadicamente, no fórum, em presença do juiz. E mesmo diante da autoridade, travavam azedas batalhas verbais. Várias vezes precisaram ser retirados da sala, ameaçados, até,  de prisão, por desacato à autoridade. Mas não chegaram a ser presos.

A sorte era que o casal não tinha filhos. Talvez, na verdade, esse fato se tratasse de azar, já que a probabilidade maior era a de que a insustentável crise conjugal havia desembocado nesse dramático desfecho justamente por isso. Ou seja, por ambos não haverem gerado descendentes. Theobaldo acusava Teresa de ser estéril e esta garantia que o defeito estava nele, já que fizera todos os exames possíveis e imagináveis e os resultados comprovavam sua fertilidade. Quem estava com a razão? Nunca se soube!

Nessa ocasião, “Clarita” já se constituía em enorme fracasso. E ele que se empenhara tanto em escrever esse livro! Nem seus parentes o compraram. Os amigos? Afastaram-se todos. A crítica havia recebido o romance com hostilidade, com mordazes observações depreciativas. Houve, até, quem o ridicularizasse publicamente e escrevesse, em reputada coluna de um dos jornais de maior circulação do País, que não entendia como um texto tão óbvio e tão medíocre pôde ser editado. Provavelmente esse sujeito não leu o livro e baseou sua “apreciação” (na verdade, depreciação) pela leitura das orelhas da capa. Muitos “críticos” tinham e têm esse hábito. Julgam-se todo-poderosos e não têm escrúpulos em arruinar carreiras.

Os direitos autorais, que mesmo nos anos de vacas gordas já não eram tão expressivos, mas que davam para mantê-lo num padrão de vida razoável, começaram a minguar cada vez mais, chegando próximos do zero. E eram todos dos livros anteriores, muito inferiores, por sinal, na avaliação de Theobaldo, a “Clarita”. Não entendia o que havia acontecido com esse romance. O enredo era original, o texto vigoroso e criativo e, no entanto... Não agradara ninguém.

Com o divórcio, as despesas cresceram em progressão geométrica. Seu advogado era insaciável e sempre pedia mais e mais dinheiro, argumentando ora que era para cobrir a despesa “x”, ora para a “y” e ora para a “z”.  “Meu Deus do céu, como é caro se separar de alguém no Brasil!!”, desabafava o desesperado escritor ao seu representante legal. Mas sempre arranjava, na base de empréstimos, os valores pedidos.

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III

Theobaldo conheceu Valquíria em março de 2004. Apesar de endividado e acossado por credores, precisava, urgente, de uma secretária, para organizar suas anotações e racionalizar as pesquisas que se fizessem necessárias para os próximos livros. Não podia pagar lá um grande salário, mas tinha certeza que muita gente talentosa se disporia a trabalhar para ele por R$ 1.000,00 mensais que, convenhamos, não é nenhuma fortuna.

Precisava escrever! Tinha que acertar na mosca e produzir uma obra fundamental, que o tirasse do buraco. Mas precisava ser um enredo original e bem urdido, que se casasse com o seu estilo preciso e coloquial. Escrever bem, agora, não era mais mero capricho, mas questão de premente necessidade.

O gabinete de trabalho de Theobaldo era uma balbúrdia só. Tinha livros e mais livros empilhados aos montes ao redor da escrivaninha em que ficava seu computador. Papéis de todos os tamanhos e cores, muitos amassados, cobriam todo o tampo e se tornava impossível localizar qualquer anotação nos momentos mais críticos e de maior necessidade.

As pastas com informações imprescindíveis estavam todas fora dos arquivos. Várias pontas de charuto pelo chão completavam o cenário desolador. Ah, e não se pode esquecer dos copos, que Theobaldo usava para beber uísque, e que estavam sem lavar há semanas, empilhados nas prateleiras da biblioteca. Havia, pelo menos, duas dúzias deles e várias garrafas de bebida vazias.

De uns tempos para cá, só conseguia escrever em estado de semi-embriaguez. Sóbrio, não saía nada. Seus arquivos no computador eram truncados e confusos. Só Theobaldo os compreendia. Careciam de urgente reorganização. Havia, por exemplo, pelo menos dez começos de história, mas todos sem continuidade. Qual deles iria, finalmente, desenvolver? Não sabia.

Theobaldo vinha bebendo além da conta e nem percebia. E fumava como uma chaminé velha de fábrica. Como alguém poderia trabalhar num ambiente assim? Não poderia! Ademais, sentia-se solitário. Evitava freqüentar a casa de parentes e de amigos para não ter que ouvir críticas. Mas precisava de companhia.

Às vezes, tentava satisfazer o desejo sexual num conhecido bordel das redondezas, mas nunca consumava a transa. “Será que fiquei impotente?”, perguntava-se aflito. Mas não dava bandeira. Pagava as prostitutas apenas para ouvir suas histórias. “Quem sabe uma delas não poderá ser transformada no best-seller de que tanto preciso”, tentava se justificar. Histórias, ouvia muitas, mas todas bastante parecidas, com começos e finais semelhantes. Novidade! Era isso o que queria. Precisava de novidade. Carecia de um enredo que nenhum escritor ainda houvesse explorado. Será que existia?


CONTINUA


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 



Um comentário:

  1. Enredos cheirando a novidade não existem, pois basta que se olhe em volta e se ache mais alguns falando do mesmo tema e da mesma forma. Ou quase. O que difere o sucesso do fracasso é algo que nem decanos editores sabem o que é. Está aí na sua história.

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