Personagem inesquecível de um livro
impressionante
Ao se abordar o tema referente a personagens femininas
inesquecíveis na literatura mundial de ficção, uma figura emerge
automaticamente. É uma mulher criada pela imaginação de alguém. Todavia, nunca
se soube, e jamais se saberá, por quem e nem mesmo quando. Trata-se de alguém que não pode, jamais, ser
esquecida, notadamente neste contexto específico que venho tratando (embora
frequentemente o seja), sob pena de se desprezar aquela que é das personagens mais
pitorescas e memoráveis da Literatura mundial. Refiro-me a Sherazade,
protagonista central do livro “As mil e uma noites” que, na verdade, é uma
coletânea de contos, sem um só autor conhecido, apesar da sua unidade temática
e estilística.
Jorge Luís Borges (meu guru literário) era fascinado por
essa coletânea de contos. Em uma de suas tantas entrevistas, concedidas tempos
antes de sua morte, na Suíça, o escritor argentino revelou, a respeito: “Os
árabes dizem que ninguém pode ler ‘As Mil e Uma Noites’ até o fim. Não por
tédio, mas porque se sente que o livro é infinito. Tenho em casa os dezessete
volumes da tradução de Burton. Sei que nunca os lerei todos, mas sei também que
essas noites estão sempre à minha espera. Ainda que minha vida seja infeliz, os
dezessete volumes aí estarão. Aí estará essa espécie de eternidade que são as
‘Mil e Uma Noites’ do Oriente”.
Destaque-se que o tradutor a que Borges se referiu é o
inglês Richard Burton. Para que os desavisados não pensem bobagem, vou logo
avisando que não se trata do ator, ex-marido de Elizabeth Taylor, que tinha
esse nome. É uma figura bem mais antiga, e bem mais controvertida, por suas
peripécias, que nada tinham a ver com cinema (que no seu tempo nem havia sido
inventado) e nem com Literatura. O tradutor, para o inglês, de “As Mil e Uma
Noites”, citado por Borges, é o espião, aventureiro, antropólogo, diplomata,
místico, poeta, explorador (ufa!!!) e sabe-se lá mais o que, Richard Francis
Burton. Há vasta bibliografia, com mais de uma centena de livros, abordando
esse polêmico (o mínimo que se pode dizer dele) personagem. Para que o leitor
tenha uma idéia de algumas das “peripécias” desse sujeito, basta dizer que ele
foi o primeiro ocidental a pisar na cidade sagrada do Islã, Meca. Acham que é
pouco? Burton foi, também, o descobridor da nascente do Rio Nilo. Poderia
alinhavar centenas e centenas de seus feitos, mas não o farei. Para nós
interessa o fato dele ter traduzido, do árabe, no século XIX, “As mil e uma
noites”, popularizando, no Ocidente, esse livro.
Jorge Luís Borges explica, sucintamente, como essa coletânea
surgiu: “Em Alexandria, a cidade de Alexandre Bicorne, é recolhida uma série de
contos ainda no século XV. Sabe-se que esses contos têm uma história estranha.
Foram relatados na Índia, depois na Pérsia, a seguir na Ásia Menor e
finalmente, acabaram sendo compilados no Cairo, já escritos em árabe. Esse é o
‘Livro das Mil e Uma Noites’”. Estão vendo? Meu guru foi claro, objetivo e
sucinto ao caracterizar a coletânea. Tratarei do seu conteúdo e, claro, do
papel central desempenhado por Sherazade, mas em outro dia. Por hoje, meu foco
está no livro em si, até para contextualizar devidamente o tema.
Borges revela fascínio por tudo nessa obra, a partir do seu
nome, sobre o qual observou: “Nesse título há uma beleza muito particular,
talvez pelo fato de que a palavra ‘mil’ seja para nós quase sinônimo de
‘infinito’. Falar em mil noites é falar em infinitas noites – muitas e
inumeráveis noites. Dizer ‘mil e uma noites’ é acrescentar uma além do
infinito”. Não faz sentido? Dá para entender a razão de eu eleger Borges como
meu guru literário? Ele explica mais a razão de se escolher um número ímpar
para título do livro: “Por que inicialmente mil e, depois, mil e uma? Acho que
há dois motivos. Um deles é a superstição (importante neste caso) segundo a
qual os números pares são de mau agouro; daí buscou-se um número ímpar e
felizmente se acrescentou ‘uma’. Se tivessem colocado novecentos e noventa e
nove noites, provavelmente sentiríamos falta de uma. Tal como ficou, sentimos
que nos dão algo infinito e, de quebra, acrescentam uma noite a mais”.
É uma delícia acompanhar o raciocínio de Borges.
Acompanhemos um pouco mais para entendermos bem a importância desse livro: “Em
‘As Mil e Uma Noites’ há ecos do Ocidente. Encontram-se aí as aventuras de
Ulisses – exceto que Ulisses se chama agora Simbad, o Marujo. Para construir o
palácio de ‘As Mil e Uma Noites’ foram necessárias gerações inteiras de homens,
que são nossos benfeitores, já que nos legaram esse livro inesgotável e capaz
de tantas metamorfoses. Esses contos que estão dentro de contos produzem um efeito
curioso, quase infinito, como uma espécie de vertigem. Muito mais tarde, tal
recurso foi imitado por outros escritores; são assim os livros de ‘Alice’, de
Lewis Carroll, e o romance ‘Sylvia and Bruno’, onde existem sonhos dentro de
sonhos que se ramificam e se multiplicam. O tema dos sonhos é, aliás, um dos preferidos
de ‘As Mil e Uma Noites’”.
Reproduzo, por fim, a sensação que o livro causou no
espírito de Borges, algo que também senti: “A gente tem vontade de perder-se em
‘As Mil e Uma Noites’, pois sabe que, se entrar nesse livro, é capaz de
esquecer nosso pobre destino humano. Entrando nele, pode-se entrar num mundo
que está repleto de figuras arquetípicas e de indivíduos também. No título de
‘As Mil e Uma Noites’ existe algo muito importante: a sugestão de que se trata
de um livro infinito. E ele é, virtualmente. Se a cronologia e a história
existem, trata-se de um fato ligado às pesquisas ocidentais. Não há histórias
da literatura persa ou histórias da literatura hindustani; nem também histórias
chinesas da literatura chinesa, pois a esses povos não interessa a sucessão dos
fatos. Para eles a literatura e a poesia são processos eternos. No essencial,
acho que têm razão”. Querem saber? Também acho!
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
A medição do tempo é, ficou parecendo, uma invenção ocidental, pelo menos na literatura e como a conhecemos, datada.
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