segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Fácil de engolir

* Por Daniel Santos

Numa tarde infeliz da infância, pouco antes do Natal, soube por acaso que não ganharia a bengala de Bat Masterson de presente ... e senti ruir meu mundo de sonhos, onde era o bam-bam-bam do Velho Oeste.

Saí à rua descalço e sem camisa, o ranho escorrendo do nariz de tanto soluçar. Foi aí que encontrei o meu amigo sentado no muro de casa, folgazão, comendo pão com manteiga, cheio de açúcar por cima.

Sentei-me a seu lado, cabisbaixo, como quem pede conivência, e lhe contei do meu desconsolo. Tínhamos a mesma idade, mas com atitude de mais velho passou o braço sobre meus ombros e disse “liga, não”.

Depois, me estendeu o naco de pão, um pitéu que costumávamos dividir quando um dos dois aparecia comendo na rua, e senti na boca que o doce dissolvia a amargura. Abraçados sobre o muro, nos regalamos.

Entendi, afinal: não precisava de bengala, tinha alguém para partilhar a dor, um amiguinho que sabia vencê-la. Como dizia, bastava jogar açúcar por cima e a vida virava um confeito fácil de engolir.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. Frustrações da infância real tomam dimensões gigantes, e, desde então, o açúcar passa a representar afeto.

    ResponderExcluir