Entre os mundos real e virtual
* Por
Frei Betto
Nosso mundo
pós-moderno é fragmentado. Uma de suas expressões mais evidentes é o
videoclipe. Enxurrada de flashes, vibrações acústicas, sons distorcidos.
Rompe-se a linearidade, enquanto a simultaneidade embaralha passado, presente e
futuro. Tudo é simuladamente aqui e agora.
O Iluminismo, ancorado
na literatura, cede lugar à digitalização frenética. Mundo que carece de sentido.
Forma que dispensa conteúdo. A performance do artista ultrapassa a arte que ele
produz. Seu nome vale mais que seu desempenho. A valoração dá lugar à
exaltação.
Einstein, que desnudou
o mistério do Universo com suas equações, foi sucedido por Steve Jobs, que nos
ofereceu maravilhas tecnológicas embaladas de refinamento estético, movidas à
velocidade que desafia o cérebro humano.
Agora a alienação já
não resulta de ideologias que distorcem a realidade para nos incutir a mentira
como verdade. Basta que sejamos deslocados do real para o virtual. Somos seres
que trafegam simultaneamente em dois mundos: o da realidade de nossas
necessidades e o da virtualidade de nossos sonhos e desejos.
Trancados em nossos
egos, avessos à sociabilidade, navegamos nas redes sociais que dispensam texto
e contexto. Bastam vocábulos desconexos, abreviações, o balbuciar de sinais
gráficos que nos conectam com a plateia global que, acomodada no teatro do
mundo, desconectada do real, mantém os olhos fixos no palco vazio.
As grandes narrativas
são deletadas por esse tempo desprovido de memória e utopia. O passado passou,
o futuro é uma quimera... Só resta o presente que se sucede prisioneiro da
circularidade infinita.
Ninguém ingressa em
uma casa sem antes avisar ou ser convidado, marcar hora, identificar-se com o
porteiro e justificar a espera e atenção.
No entanto, centenas
de pessoas invadem, pelas redes sociais, o nosso espaço privado, ferem a nossa
sensibilidade com ofensas e desaforos, desafiam os nossos valores, jogam-nos na
vala comum das emoções cifradas. Tudo se assemelha a um jogo de pingue-pongue
com rede, porém sem mesa.
Viciados em
digitalização, aprisionados pela tecnologia que assegura retorno imediato ao
capital, perdemos horas e horas da vida atirados ao ringue onomatopaico. Não
navegamos, naufragamos. Deixamo-nos aprisionar pelas redes que nos favorecem a
evasão de privacidade.
Ora, ninguém precisa
mais se preocupar em invadir a nossa privacidade. Nós mesmos nos expomos em
rede global, arrancamos máscaras e roupas, escancaramos nossa indigência
cultural e nossa miséria espiritual.
Como artefato
tecnológico, somos também apenas uma forma. Um objeto jogado aleatoriamente no
turbulento mar da dessignificação.
Escravos da
virtualidade, acorrentados nas redes, não somos mais capazes de desligar o
celular e de nos desligar dele. É ele que nos permite olhar o mundo pela
janelinha eletrônica dessa prisão em que nos trancamos, cuja chave jogamos nas
águas que cercam a ilha na qual nos isolamos, desprovidos de alteridade e
sentido.
* Frei Betto é escritor, autor de “O
que a vida me ensinou” (Saraiva), entre outros livros.
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