Cena qualquer
* Por Márcio Juliboni
Barzinho qualquer da Vila Madalena.
Mesa de bar animada. Cervejas. Som alto. Muvuca. O menino aproxima-se. Olhar
baixo. Caixa de balas.
Menino choraminga: tio, compra uma bala
pra me ajudar...
Tio sorri com a protocolar comiseração:
hoje não, meu filho... tô sem dinheiro. Volta-se pro amigo e continua: então,
como tava te falando... é do caralho!!! Simplesmente demais! Você precisa
ouvir. Puta som, cara! Puta som! Tava bombando em Nova Iorque! Todas as pistas.
Comprei tudo desse cara que achei por lá! (amigo segue concordando com a
cabeça)... "é, imagino! O cara é foda!" "é...pô, traz pra eu
ouvir".
Menino, sem arredar o pé: um real,
tio... um real... compra vai... me ajuda...
Tio, já contendo a impaciência: ô,
garoto, eu não falei que tô sem dinheiro? Hã? O que é que você quer? A vida tá
dura...
Namorada do tio, tentando ser
simpática: volta outro dia, meu anjo... ele não é bonitinho? Tão lindinho! Que
carinha de anjo – vira-se pra namorada do amigo: não lembra aquele... aquele do
filme? Aquele, poxa, da mostra de cinema? Não é? Ri. Olha, menino, você podia
ser ator, hein? O Waltinho não tirou aquele engraxate da rua? Então!
Compra tio... e você, dona? Compra uma
bala...
Eu??!! Doooonaaa??!!? Que é isso? Sou
velha agora? Todos riem... zombaria na mesa. Mais uma cerveja, ô Valdemar!
Garoto, você podia fazer qualquer coisa, menos chamar ela de dona!!! Agora é
que você não vende mais nada pra ela!!!!
Desculpa, tia... Tiiiaaaa??!!! Gritos
na mesa: piorou!!! Hahaha! Compra vai... ô menino, não seja chato, vai. Tá
cheio de mesa aí. Vende praquele casal de namorados lá, ó! O cara tem jeito de
que tem bafo. A menina vai comprar rapidinho! Mesa gargalha.
Garçom passa olhando feio pro menino.
Assobia. Manda sair. O menino se afasta. Desconcertado. Fica pela calçada,
indeciso. Balas na caixa. Caixa na mão.
Tio, com seriedade: que moleque chato!
Tá bom, tem que trabalhar... nesse país de filha-da-puta, só pode dar nisso....
os caras de Brasília aí... viu? Viu? Até ambulância os putos sugam! Uma pouca
vergonha! É foda!!! É foda!!
Namorada:
é por isso que eu não voto mais, não curto política, não curto esse papo baixo
astral. Vira-se pro amigo: ele – aponta pro namorado – vive com esse discurso
engajado, filiado, militante. Enche o saco com essa porra toda! Arte engajada,
textinho em blog... mas eu cansei! Quando rolou toda a merda, eu disse – tá
vendo? É tudo igual! Tudo a mesma merda! Votou? Toooomaaa! – namorado irritado,
negando com a cabeça, veemente... "não" "não"
"não" "nem vem. Pô, puta que pariu, nem vem"...
Namorada: por isso, eu curto arte! Meu
papo é cinema, curtas, literatura, poesia... eu quero mais que política se
foda! Não mexendo no meu baseado e na minha estante, tá tudo certo! E
gargalha...
Amigo levanta o copo: viva a maconha!!!
Um brinde!!! Zoeira na mesa! Alguém entoa: "li-ber-daaaa-de pra dentro da
ca-beeee-çaaa". Alguém ensaia com a cabeça um movimento de reggae. Outro
se benze com a guimba que tá rolando pela mesa. Traga. Solta fumaça como se libertasse
a alma.
Namorado: ô gente! Pera lá! Não vamos
esculachar também! Sou militante sim! Acredito na porra do mundo melhor! Luto
por isso! E daí? Não falaram? Lá... quem era? Que quem não gosta de política é
governado por quem gosta? Então... – ia iniciar uma exortação para que todos se
engajassem, participassem, lutassem, mas é interrompido pelo menino, que voltou
a se aproximar do grupo - ... tio... ele, agora irritado com a insistência de
ser chamado de tio pelo moleque, explode: puta que pariu, pivete!!! Caralho! O
que você quer? Já não te falei que tô sem grana!!! Cacete! Sai fora! E vira-se
pro grupo: só pra encerrar a conversa e passar adiante – quando o Brasil for
mais justo, esse tipo de coisa (e aponta pro menino) não vai mais acontecer!
Vira-se pro amigo: então, cara, me fodi
pra viajar pros Estados Unidos... deixei pra comprar os dólares em cima da hora
e o câmbio explodiu... puta jornalista de merda que eu sou!...
*Jornalista, cobre Economia e
Negócios no portal Exame. Trabalhou no serviço de notícias online, “Panorama
Setorial”, do jornal Gazeta Mercantil, na Agência Estado e em várias revistas
segmentadas. Iniciou a carreira na grande imprensa em 2000.


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