quarta-feira, 19 de agosto de 2015

A vingativa Emma Zunz


O escritor argentino Jorge Luís Borges destacou-se nas letras latino-americanas e mundiais principalmente como poeta e contista. Isso não quer dizer, todavia, que não tenha incursionado em outros gêneros. Foi, por exemplo, notável ensaísta. Publicou pelo menos dois livros que não é possível identificar com exatidão se são ficcionais ou não, no caso “História universal da infâmia” e “O livro dos seres imaginários”. Fez parceria com Adolfo Bioy Casares em seis outras publicações, entre as quais dois roteiros cinematográficos (“Los orilleros” e “El paraíso de los creyentes”) e quatro volumes de contos. Foi, como se vê, escritor eclético e, sobretudo, desses que convidam a nós, leitores, a participarmos de seu processo de criação.

Como contista, Borges criou personagens dos mais variados. E, claro, trouxe a lume muitas protagonistas femininas, e várias delas (diria todas), inesquecíveis. Tratarei, no entanto, especificamente, de cinco delas na sequência, iniciando, hoje, por Emma Zunz, do conto do mesmo nome inserido no livro “O Aleph” (lançado no Brasil, em 2008, pela Editora Companhia das Letras). Li essa obra em espanhol, por volta de 1967 (cuja primeira edição foi publicada na Argentina em 1949).

Aprendi muito com Borges sobre a arte de narrar uma boa história sem necessariamente estender-me na narrativa a ponto de redigir um romance. O conto é, ao lado da poesia, meu gênero favorito em Literatura. Por que? Pela disciplina que impõe (entre outras coisas), fazendo com que narre, em poucas páginas, o que muitos só conseguiriam fazer (se conseguirem) em centenas delas. Não digo que “imitei” ou que “imite” Borges, até porque não tenho competência para tal. Antes tivesse! Mas aprendi com ele certas técnicas que me têm sido de enorme utilidade. E elas tornam-me um contista se não excelente ou mesmo bom, pelo menos razoável (o que entendo que já seja de bom tamanho).

Emma Zunz é personagem complexa, totalmente movida por paixões, e por isso fascinante. Trata-se de uma jovem recatada (era virgem), tranqüila, mas que, após receber a notícia da morte do pai, se transforma por completo. Conclui, após ler uma carta anônima, que o suicídio daquela pessoa que tanto amava teve um culpado, que deu desfalque na empresa que trabalhava, mas cuja culpa recaiu no suicida. Emma decide, pois, fazer justiça (ou o que entendia como tal) com as próprias mãos. Urde um plano, que lhe exigiria sacrifícios além de muito sangue frio, para executar o homem que considera culpado pela morte do pai. A história é contada por outra pessoa, por um narrador distanciado que, aparentemente, pode relatar cada detalhe das ações e até das sensações de Emma.

A moça fora informada pelo próprio pai (que lhe jurou, antes que decidisse se suicidar) que o ladrão era Loewenthal. Este, portanto, passou a ser alvo de sua “justiça”, depois que ela recebeu a tal carta comunicando-lhe, anonimamente, a ocorrência do suicídio. A partir daí ela elabora seu plano de vingança que na sua cabeça era o de “justiça”. Para levar sua intenção a cabo, telefona para Loewenthal, seu atual patrão, e diz que irá ao escritório para lhe comunicar, em segredo, uma greve das funcionárias da empresa que estava em andamento. Seu plano era o de fazê-lo confessar o roubo, sob a mira da arma, executá-lo e depois alegar que agira em legítima defesa da honra, por ter “sido estuprada” pela vítima.

Para que o álibi fosse convincente, porém, teria que perder a virgindade. Emma sai, portanto, em busca de quem realize o que seria essencial para o êxito de seu plano, embora isso a repugnasse. Ou seja, precisava encontrar um homem que a desvirginasse. Vaga a esmo por alguns bares até que “opta” por um marinheiro sueco, embriagado ou semi. E este consuma o ato, que ela considera uma tortura e imenso sacrifício. Detesta a experiência, mas considera-a mais do que necessária: essencial para seu propósito. Borges sugere que ambos foram úteis um para o outro: “ela serviu para o prazer e ele para a justiça”. O plano de Emma, porém, não deu totalmente certo. Ela não esperou que Loewenthal confessasse seu delito sob a mira da arma (se é que confessaria). Movida por incontrolável ódio, atirou antes. Só quando o sangue já corria abundante, ela começou a acusá-lo. Mas a vítima morreu antes que a acusação terminasse. Dessa forma, Emma “nunca soube se ele chegou a compreender” porque estava sendo morto. Mas a segunda parte de seu plano deu certo. Para a sociedade, ela acusou Loewenthal de estupro, e assim justificou tê-lo assassinado.

Borges não faz qualquer juízo de valor sobre o ocorrido. Deixa todo e qualquer julgamento exclusivamente por conta do leitor. Para ele, esse personagem anônimo, mas essencial para todo e qualquer escritor, é sempre “co-autor” de tudo o que escrevemos. Cada qual interpreta nossos textos à sua maneira, conforme sua cultura, suas experiências, seu temperamento etc. É o que Borges deixa implícito, por exemplo, no prólogo do livro “História universal da infâmia”, ao afirmar, a certa altura: “Ler, além do mais, é uma atividade posterior à de escrever, é mais resignada, mais atenciosa, mais intelectual”. E não é? Creio que o leitor atento há de concordar que Emma Zunz é personagem feminina absolutamente inesquecível, tanto por seus equívocos, quanto por sua paixão e sua ânsia por vingança, que entendia como sendo “justiça”, com o sacrifício de gostos e de princípios que para ela eram sagrados..

Boa leitura.


O Editor.

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