terça-feira, 18 de agosto de 2015

A inesquecível “fair lady”



O irlandês George Bernard Shaw é dessas personalidades emblemáticas, e raras, das tais que basta você conhecer alguns episódios de sua biografia, e pode ser qualquer um, para se “apaixonar” por ele. É uma figura absolutamente inesquecível!!! Dramaturgo, romancista, contista, ensaísta e jornalista (entre tantos outros “istas”), ousou, sobretudo, defender, publicamente, causas que não eram do agrado dos poderosos. Foi, por exemplo, socialista ferrenho. Ainda assim desagradou as autoridades da extinta União Soviética, que de socialistas não tinham nada (afinal seu regime era tecnicamente mero Capitalismo de Estado e não comunismo, como apregoava) que moveram feroz campanha contra ele. Foi feminista convicto, numa época em que defender essa causa era querer cair em ridículo. Em certa época da vida, converteu-se ao vegetarianismo, postura que defendeu com inusitado vigor e entusiasmo sempre que pode. E deu-se bem nessa postura na contramão da maioria por ter, a seu favor, uma “arma” de dificílimo manejo, mas que, quando bem manejada, é insuperável: a ironia.

Seria de se esperar, pois, que um sujeito tão ousado, tão polêmico e tão controvertido (mas sumamente talentoso), criasse personagens no mínimo marcantes, de ambos os sexos, mas, sobretudo, femininas (afinal, era feminista). E, de fato, criou. Quem é ela? É, nada mais, nada menos, que uma “fair lady”. Trata-se de Eliza Doolittle, a obtusa vendedora de flores das ruas de Londres, transformada em refinadíssima dama da alta sociedade inglesa, primor no quesito etiqueta social, e em apenas seis meses, pelo culto professor de fonética, Henry Higgins. A personagem foi criada para protagonizar uma paródia do mito de Pigmalião, do poeta romano Ovídio, que Shaw tratou com tanta habilidade a ponto de esquecermos a fonte que o inspirou, e lembrarmo-nos somente da sua peça, pela originalidade que conseguiu emprestar ao seu enredo.

A criação teatral do autor irlandês é tão perfeita que hoje é tida e havida, com justiça, como “clássico” da arte dramática, com milhares e milhares de representações, nos mais diversos palcos ao redor do mundo. E mais, o próprio Bernard Shaw teve o capricho de adaptá-la para o cinema. Dessa forma, conseguiu uma façanha nunca mais repetida por escritor algum: conquistou, com “Pigmalião”, tanto o Prêmio Nobel de Literatura de 1925, quanto o Oscar, da Academia de Cinema de Hollywood, de 1938. Anos mais tarde, em 1964, a peça foi refilmada, baseada no roteiro de Shaw, agora com o título de “My fair lady”, produção dirigida por George Cukor. Até os estúdios Disney basearam um de seus mais populares desenhos animados nessa obra do dramaturgo irlandês, ou seja, “A dama e o vagabundo”. E, claro, a personagem Eliza Doolittle, tão bem urdida por ele, ganhou destaque em todas essas versões e tornou-se absolutamente inesquecível. Pudera!

Pigmalião, conforme Ovídio, era um escultor e rei de Chipre. Era um artista tão competente e refinado que se apaixonou por uma estátua que havia esculpido ao tentar reproduzir a mulher ideal. Ficou, todavia, frustrado pelo fato da escultura não ter vida. E tanto se frustrou que começou a definhar, definhar e definhar, corroído de tristeza causada pela insana paixão por algo impossível. A deusa Afrodite, todavia, apiedou-se de Pigmalião. Atendendo a seu desesperado pedido, e não encontrando em toda a ilha mulher que sequer remotamente chegasse aos pés da estátua que o artista havia esculpido (tanto em beleza, quanto em pudor), transformou a escultura numa “humana”, ou seja, de carne e osso. E o caso, na versão de Ovídio, teve o devido “happy end”. Pigmalião casou-se com a bela e virtuosa criação sua que, graças a Afrodite, ganhou vida e, nove meses depois, o casal gerou uma filha, chamada Pafos, que inclusive deu nome à ilha que existe até hoje no Mar Egeu.

Para o leitor entender melhor a personalidade de George Bernard Shaw, cito, de passagem, sua atitude em relação ao Nobel de Literatura. Em princípio, ele quis recusar o prêmio diretamente, chegando a anunciar que o renunciaria. Argumentou que não tinha nenhuma vontade de receber honrarias públicas pelo que produzia. Aceitou-o, no entanto, mas somente a mando da esposa. Ela convenceu-o que a homenagem não era propriamente para ele, mas para a Irlanda, que ele representava. Shaw, no entanto, impôs uma condição para a aceitação: a de que o prêmio em dinheiro fosse todo utilizado para financiar traduções de livros suecos para o inglês. E assim se fez.

Esse foi o Bernard Shaw que tanto admiro e que chegou quase à idade centenária, produtivo e cada vez mais irônico e mordaz à medida que os anos passavam. Ele nasceu em Dublin, capital da atual República da Irlanda, em 26 de julho de 1856. E faleceu em Ayot Saint Lawrence, em 2 de novembro de 1950, aos prolíficos e bem vividos 94 anos de idade. Até na morte conseguiu ser original e polêmico. Por recomendação sua, feita antes de morrer, seu corpo foi cremado e suas cinzas, juntamente com as da esposa, foram misturadas e lançadas no jardim de sua casa ao longo (vejam só) da estátua de Joana d'Arc em Shaw's Corner, Hertfordshire na Inglaterra. Por essas e por outras, considero Eliza Doolittle personagem feminina inesquecível de um escritor que, com certeza, nunca conseguirei esquecer.

Boa leitura.

O Editor.

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