sexta-feira, 10 de setembro de 2010




Encontro com Talis Andrade

* Por Urariano Mota


O encontro foi em agosto, há dois anos. Mas continuo com a mesma impressão de 2008.

A gente não conhece as pessoas. Eu devia encontrar Talis Andrade, pela primeira vez, no domingo 31 de agosto. Era o lançamento de alguns livros de sua poesia. E assim fui, e assim foi, a partir das 8 da noite.

Entramos eu e minha mulher em um grande toldo, uma grande barraca, onde havia mais de um lançamento, com muitos escritores, porque era o último dia do Festival de Literatura do Recife. Ao passar pela entrada, sinto olhos que me acompanham. Procuro ver quem é, e um senhor apoiado no balcão me cumprimenta mudo, com o queixo. Respondo também mudo, confuso, porque não sei, ou não me lembro, mas sorrio, e sigo em frente. Procuro Talis e não o encontro.

Vou ao estande da Livro Rápido, a editora dos seus livros, e pergunto ao editor Tarcísio Pereira:

- Cadê Talis?

- Ele já saiu para o lançamento, Tarcísio responde.

Volto. Pergunto às recepcionistas no balcão por ele, mas nesse particular as recepcionistas são só recepção, pois de nada sabem. Insisto, até que me responde a mais sábia:

- Mas ele está aqui?

Saio. Vou de mesa em mesa, onde cada escritor aguarda, alguns sozinhos, o que por si só confrange o meu peito. Eu sou cada um deles, eu os entendo e sinto. E mais ainda a revolta enche o meu peito, porque isso não é nem pode ser o destino da literatura. Mas procuro Talis. Onde está o poeta dos sentidos, o comentarista bem-humorado, o jovem louco como um franco-atirador?

Digo e repito: a gente não conhece as pessoas. Descubro uma mesinha onde se lê em um retângulo de 8 centímetros: “Talis Andrade – Escritor”. Nela se encontram três homens sentados ao redor. Pergunto então ao de ar mais respeitável, um cidadão encanecido:

- Talis já chegou?

- Eu sou Talis.

“Não pode ser”, quase digo. É a mesma pessoa que me havia cumprimentado antes. Sorrio, a princípio envergonhado de minha estupidez. Mas agora, ao escrever, percebo em que consistia o meu erro. Todos que lemos um autor, um poeta, um prosador, dele formamos uma imagem que resiste e se sobrepõe até mesmo ao retrato que conhecemos. Ora, não nos digam nunca que Manuel Bandeira era um grande namorador, amante, que teve muitas mulheres, porque dele sempre guardaremos a lembrança de um grande solitário, como no Poema só para Jaime Ovalle. Ninguém por favor nos prove com registros físicos, magnéticos, que João Cabral falava fino, pequeno e cheio de indecisões e reticências. “Entende? Entende?..”, ele repetia. Para nós, que temos a felicidade da sua leitura, ele é o poeta viril, contundente, de fala precisa, vigorosa, com a luz do sol no Capibaribe. Por isso consigo agora entender o Talis que eu imaginava, tão diferente do senhor manso, de ar sereno, à minha frente. Entendam. Que imagem pode ser feita de um homem que na mesma semana em que o encontro, assim comentou um dos meus textos,

“Se as mães-de-santo permitirem, leve Cristina.
‘Cristininha não era só, ela não era só os seus olhos verdes, buliçosos.


Havia Cristinas de predicados numa só pessoa’

Você faz poesia na apresentação. Certamente a huri possui o dom de amar a poesia” ?

O comentarista, o escritor Talis, com o sangue jovem e quente, gostaria de conhecer Cristina, em um sentido até físico. Brincalhão, zombeteiro como um espírito, já se vê. Ou então, que modo de ser, de estar, idade e espírito alguém pode esperar do autor que escreve

“Você fecha
os olhos,
e vou escrevendo
bem de leve
no teu corpo,
com a ponta
do dedo,
palavras de carinho
que tua pele,
em arrepios de desejos,
vai lendo
devagarzinho”?


Então eu me sento ao lado do senhor respeitável, que briga com o Talis que eu imaginava. E como o meu modo de consertar um erro é cometer um novo erro, lhe digo:

- Eu julgava que você tivesse 50 anos.

Ele sorri. E para consertar o que acabo de dizer, insisto:

- Qual a sua idade?

- 71 anos e meio.

- Podemos arredondar pra 50.

Ele sorri de novo. Sorriso mesmo, em silêncio. Então lhe toco o ombro, para me contaminar de sua energia, penso agora, mas no momento como quem lhe diz, “Olha, Talis, nós somos muito parecidos. Nós somos iguais. Eu partilho da tua aventura. Estou em comunhão com o teu destino”, mas isso eu não digo, que não estou bêbado, como ficarei no fim da noite. Trago quatro cervejas para a mesa, os seus dois amigos não querem, minha esposa não gosta de cerveja, e eu bebo com ele as quatro, contrariando a prescrição médica de que os fermentados podem me levar o último rim.

- Eu estava com dor de cabeça, ele diz. Agora não estou mais.

Vem a sua filha e bate fotos dos escritores e dos seus dois amigos. Não sei se na foto irá aparecer algo como um sentimento de família, de irmãos, num sentido maior que o genético. Não sei, porque a imagem não revela sentimento. Ainda não inventaram o raio-X da alma, mas ali estou com um senhor irmão, de pais tão diferentes, de país tão desigual.

Seguimos para o bar mais próximo. Enquanto caminhamos eu, minha mulher, sua filha e genro, ao seu lado eu me sinto como na primeira juventude. Acreditem. Lembro que seguíamos, em 1975, para beber sem que nos disséssemos isso. Nós nos adivinhávamos, porque navegávamos no mesmo mar de angústia. Desta vez, o sentimento de juventude vem com outro acento: eu sei que ele não quer que esta noite acabe, eu sei que tenho coisas a aprender, e em 1975 como em 2008, com a mesma vontade de conversar sobre literatura, disfarçada em conversa sobre o mundo.

Então o escritor me fala do que os leitores dos seus poemas não podem sequer imaginar: Talis Andrade é um jornalista de longa e madura experiência, em cargos de direção, no batente dos maiores jornais nordestinos. Ele conhece casos, pessoas, casos sobre pessoas, entre as quais se encontram Carlos Pena Filho, Câmara Cascudo, Joaquim Cardozo, Mauro Mota, que vinha a ser o maior moleque dos poetas conhecidos, tão diferente do grave e alto artista das Elegias. Sobre Carlos Pena ele conta uma aventura do poeta magríssimo que diminui a nossa lamentação por sua vida tão breve. E nos mata de inveja 50 anos depois: Carlos Pena, ninguém sabia, recebeu da cantora Elizeth Cardoso o que sonhamos enquanto ouvimos a Divina: carinho, amor e sexo. Eis uma conseqüência inimaginável do Soneto do Desmantelo Azul.

Eu lhe digo, a esta altura perdido em uma quarta ou quinta dose, que menti, por pudor, quando lhe afirmei, lá no lançamento, que o imaginava com 50 anos. Ora, pelos poemas, pela força da sensualidade, do erotismo que salta de muitos dos seus versos, na verdade, Talis, eu pensava que você tivesse no máximo 40 anos. E digo mais: eu o julgava mesmo um jovem com os cabelos precocemente encanecidos. Ele sorri, como se tivesse uma fórmula, uma resposta que a ninguém diz. Karina, a sua filha, fala:

- Papai vive muito para o que ele escreve, sempre em conexão com o mundo.

Karina é uma jovem bonita, com uma idade em torno de 25 anos, e cuida dele como uma devotada médica, enfermeira e amiga:

- Papai, o senhor não comeu nada.
- Depois eu como. Depois vamos para um restaurante.

Pergunto-lhe quantos filhos tem, além de Karina.

- Ela é única, ele responde.

Sinto que ele dá à palavra um sentido mais amplo que o fato de não ter mais filhos. Na presença do genro ele declara que Karina é única. Sinto o peso e a ênfase. Na hora não entendo o alcance, estou bebendo, estamos bebendo, estamos em cima da hora, e todos somos muito espirituosos somente quando a hora e o dia passam. Agora, enquanto escrevo, alcanço o sentido. No livro Cavalos da Miragem, leio

“Nasceu Karina
O sol despontou
Na minha vida”.

Em algum lugar do coração não deve ser proibido o pai casar com a filha. Em alguma pátria lá fora, se tal não for possível, os poetas, os artistas já tocaram.

“AS PRIMEIRAS PALAVRAS

O regozijo
em ouvir as primeiras palavras
de uma filha

Karina vai criando
por inteiro
da casa
ao terreiro
gente
bichos
e objetos
ao nomeá-los

Um mundo
tão exclusivista que
para as pessoas estranhas
abre o berreiro”

O encontro se encerra porque Karina pega cedo no trabalho. Ela nos deixa em casa. Então, antes de dormir, não consigo distinguir o Talis que eu vi do Talis que sinto. No outro dia, vergonha tenho de perguntar à minha mulher como era mesmo ele. Ela poderia responder que bebi demais, e por isso não lembro. Se não bebesse, saberia. Mas sei e tenho uma convicção, certeza absoluta. Agora resolvo o enigma. O poeta é o que escreve. Por mais que aparente outra idade, Talis tem mesmo 40 anos.


• Escritor e jornalista

4 comentários:

  1. Hoje era um dia em que eu não postaria por inúmeros motivos e um deles é uma profunda tristeza. Mas, fica
    impossível ao ler textos como esses e simplesmente calar.
    É lindo ver a admiração de Urariano e a maneira como
    fala de Talis. Torna-os mais próximos de nós.
    Abraços aos dois

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  2. Que inveja!!!!Tenho de confessar, é o que sinto ao saber desse encontro. Quem me dera estar presente, conhecer os dois que tanto admiro! E uma cobrança, Urariano: por que somente agora você escreve sobre esse encontro?
    Abraços aos dois

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  3. Cheguei agora do Mercado da Boa Vista. Sábado conversei com Urariano (segundo encontro) e Albertim, só faltou Talis Andrade (não o conheço pessoalmente). Urariano me deu boas referências em favor de Talis e agora leio este encontro fabuloso garantindo as suas qualidades. É de invejar como diz Risomar. Amanhã estarei novamente no Mercado da Boa Vista falando sobre o Literário. Vamos se tornar mais próximos ainda.
    Abração a todaos

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  4. As fotos desmentem a ideia que temos dos nossos escritores, cantores e radialistas. Estes ainda mais. Como são, ou pelo menos, eram escolhidos pelas vozes másculas, de barítono, tinham imagens de gigantes. Diante das pessoas medianas que encontrávamos, havia decepção. No caso, o vigor da poesia de Talis o faz grande em amplos sentidos. Não há decepção; há acréscimo.

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