sexta-feira, 17 de setembro de 2010




A melhor noite das nossas vidas – III

* Por Urariano Mota


Ah, se eu soubesse, o mal que dirigimos contra o nosso amor é só um mal que dirigimos contra nós mesmos. Ferimos somente no que nos ferimos. E mais nos ferimos porque ferimos. Se nos feríssemos somente a nós, menos funda seria a nossa dor. Lembro:

Lembras quando eu te disse, Zezito, lembras que eu te disse que eras sujo, imundo? Não retiro o que disse. Eras e és. O que eu não te disse, meu amor, é que graças à tua sujeira, à tua imundície, me aceitaste na minha plenitude, até mesmo nos dias em que eu menstruava. Foi graças à tua sujeira que me quiseste, que continuaste a me querer, quando me retiraram um dos seios. E o viste, e continuaste a me querer e a desejar como se o meu corpo se mantivesse inteiro. Foi graças à tua imundície que me viste entre sangue e fezes, depois de um aborto, e ainda assim o teu desejo não caiu. Foi graças à tua imundície, enfim, que suportaste meus dias de mau humor, minhas noites de azedume, e ainda assim não subiste uma nota à altura da minha rabugice. Dizias-me, apenas, “é este o seu bom-dia? ” , e com um mau dia não me recompensavas. Sim, foste e és imundo, e por isso muito te devo essa graça.

Lembras-te daquelas noite em que me procuravas? Tu me procuravas, sem encontrar o meu corpo. Lembras-te? A perda, a ignorância, a irreparável perda, a dor dessa perda me acompanharão para sempre. Carregarei sozinha, porque os teus olhos fechados, inertes, talvez já não se lembrem. O gozo que não tive está perdido. Carregarei sozinha a perda e a lembrança. (Vejo-te nu a correr pelo quarto, agora. Estou na cama, de olhos fechados, e tu me circundas, e bates com as mãos nas paredes, e corres nu como um guerreiro sem tribo, desgarrado, em guerra. Meu Deus, isto será verdade, ou o meu desejo? Será isto um desejo tardio, um sexo temporão, meu amor? ) Sugar, my Baby, devo rezar, ó Sugar, my Baby, rezar e cumprir o meu fado. (“I’d make a million trips / To his lips / If I were a bee / ‘cause they are sweeter than / any candy to me” ) Escuto isso, meu cantor? Isto sai de você, ou sai do Zezito que circula o meu corpo nesta madrugada? É uma despedida, um ritual de despedida? (Ó Sugar, I call my Baby my sugar... ) Não, não agora, Zezito. Ainda não, por favor. Deus meu Senhor, ainda não estou preparada! A matéria não pode vencer o sentimento, meu Deus! Ainda que ratos saltem sobre mim, ainda que baratas voem e pousem e passeiem sobre o teu corpo, ainda que fedas podre, eu te quero ainda, Zezito. Descarnado, só ossos, mas ainda não, ainda não agora a despedida. Levanta-te e anda, vamos sair deste quarto. A doença é o hospital, meu amor. Vamos.


(Vamos. Mas não mais para a frente. Chegamos a um ponto, Jussara, em que toda imortalidade é regresso. Você se lembra, minha linda, de quando éramos jovens, belos, fortes, e a vida era o futuro? Você se lembra? )


Como me lembro. Quem o vê assim, não sabe. Você era um feixe de músculos, cheios, rijos, luminosos. Que força tinham os seus braços! Como era bom o seu abraço. Que favo era o seu beijo. Eu faria mil viagens para aqueles seus lábios. Açúcar, meu amor. Eu não estou chorando. A gente soluça assim de emoção. Porque a sua imagem, aquilo que você foi, aquele Zezito que plantou em mim o direito e o gozo de ser mulher ... eu não estou chorando. Eu só estremeço porque ... eu não estou chorando. O meu soluço é a sua lembrança. O homem bonito que foi meu companheiro, é assim e por isto por isto que soluço.


(“Tome, doutor, esta tesoura, e corte / Minha singularíssima pessoa. / Que importa a mim que a bicharia roa/Todo o meu coração, depois da morte?! ...”)


Havia em você um gosto de chocar, que quase toda a gente interpretava como grosseria, quando era mais desejo de expressar a verdade. É que nós somos de um meio em que a verdade se mistura à grosseria. Dizemos “dizer a verdade”, quando começamos a ser grosseiros, insensíveis à dor alheia. No entanto,


(“Meu coração tem catedrais imensas,/Templos de priscas e longínquas datas,/ Onde um nume de amor, em serenatas,/Canta a aleluia virginal das crenças”)


Eu sei, eu o vejo e sei que você me diz, exatamente agora em que a sua boca, sôfrega, parece buscar oxigênio. Eu sei o que você me diz, porque eu me lembro, porque nos lembramos: “meu coração tem catedrais imensas”. E isto era verdade mesmo quando dizia, enrubescendo, “que me importa a mim que a bicharia roa todo o meu coração depois da morte?!”. O seu coração tem catedrais, mesmo assim, agonizante. Eu sei, porque o pego, porque o acaricio, e sinto que você levemente estremece.


(Há quanto tempo não nos amamos, Jussara? Vamos, ajude-me nas contas. Não vale a noite em Buenos Aires. Não vale porque ali foi uma exceção. Esqueça Buenos Aires. Há quanto tempo não nos amamos, Jussara? Sim, vamos, ajude-me. Se você não se lembra, eu calculo por aproximação: há cerca de 20 anos. Acompanhe-me na reflexão. Pelo menos há cerca de 20 anos. Não falo de um sexo de tempestade, incerto, que vem como um trovão e some, às vezes sem deixar eco. Não me refiro a um sexo de raiva, feito para descarregar, para expulsar a seiva. Não falo do sexo oportunista, de urgência, que fazemos para aproveitar o instante raro, antes que a oportunidade morra. Falo de um sexo de carinho, nascido no carinho, crescido no carinho, produzido pelo carinho. Um sexo que é somente carinho, que é uma carícia tão boa que prescinde do sexo. Como o molho do peixe feito com tamanha arte que o peixe é um excesso. Falo do carinho que têm os amantes que se amam, com ou sem sexo. Há quanto tempo não nos amamos, Jussara? )


Estremeces como há muito não via, Zezito. Estremeces e vejo no teu rosto uma contração nos olhos fechados, um enrugamento entre as sobrancelhas, como se me recriminasses. Como se te fosse estranho, uma contrariedade, o toque dos meus dedos em tua face. Por quê? Eu sei, eu imagino, não fales. Eu sei por que reages assim. Sei e te digo: há quanto tempo não te faço um carinho! Sei e por isso te esclareço: que espaço abriste em nossas vidas para este carinho? Quantas vezes a tua ira, as tuas insensatas fúrias, fecharam a porta a este carinho? Não sei se estou certa quando falo em fúria. Talvez fosse melhor dizer cerrada incompreensão da tua parte. Pois tenho certeza de que nasceu do teu desentendimento a tua fúria. Sinto, agora sei, Zezito. Eu lamento isto saber somente agora, quando tudo está por se desfazer, quando até mesmo esse carinho, tardio, parece inútil. Permita, por favor, que te fale entre os parênteses. Dentro deles nos escondemos, e posso falar de mim para mim, e de ti para ti.

(Zezito, não compreendes que eu estava acostumada ao carinho cuja finalidade era o sexo, ao carinho que era meio, nunca a um carinho que é a comunhão de estar ao lado de quem se ama? Todos os teus afagos, Zezito, todas as tuas carícias, todos os teus bens tinham um só objetivo: a penetração. Melhor seria se desprezasses de vez a minha pessoa e honrasses apenas o meu sexo. Se isto, em nossa juventude, foi uma felicidade, uma alegria imensa, em nossa velhice, Zezito, mais próximo estava de um abuso. Ou, se você quer de outra maneira, mais próximo de um velho teimoso, ou de um ridículo, para ti, e mais ridículo ainda para a minha pessoa. Pois não sabes, Zezito, que já não me excito mais como antes, será que não sabes que a penetração me é dolorosa, não vês que a minha própria excitação se faz ainda mais lenta que a tua? Não, não vês, ou não vias. Querias aproveitar o teu momento e vinhas célere, independentemente de eu te buscar, ou de te exigir, ou de esperar. Então, por isto, passei a evitar os teus carinhos, porque eram interesseiros de um bem que já não era fácil e ligeiro como antes. Então passei também a evitar os meus carinhos para a tua pessoa, porque não queria que fossem interpretados como os de antes. No entanto, Zezito, como eu sentia falta dos teus, como eu sentia vontade de te amar, com ou sem sexo! Como eu gosto da tua pessoa! Meu velho doido, meu velho teimoso, que me deixas também tão velha e teimosa - quanto desentendimento, quanta incompreensão, ficou do nosso amor.)


(Dentre as radiações que me corroem, resiste uma voz que me diz: o amor deveria começar entre os velhos, para que a gente soubesse o valor de um carinho. Um urubu pousou na minha sorte. Como esperei este afago que agora me dás, e já não posso expressar de viva voz o que sinto! Agora, quando a voz me foge, quando falo e atropelo sílabas, quando procurando dizer “azul”, digo “sul”. Agora, quando as minhas mãos desobedecem a meu projeto de vontade. Agora, quando urino e não sei, quando me tratam como uma trouxa de panos. Agora, e somente agora me vêm esses trêmulos dedos que beijei e adorei na juventude. Estranho e traiçoeiro abutre. Um urubu pousou na minha sorte. Em mim latejam estes versos, que não sei se ouvi: Cante a aldeia, / Corra a matraca, / Cortem as veias, / Chamem a parca: / Velho, teu amor é cilício.

O teu amor me vem quando a ele já não respondo.

• Escritor e jornalista

2 comentários:

  1. O tempo se esvai sem
    nos dar a chance de voltarmos
    atrás. As fissuras comprometem
    e os remendos já desgatados
    não servem mais.
    Texto lindo mas que doeu na alma.
    Parabéns Urariano.
    Abraços

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  2. Uma ampla amostra, ou melhor, um mostruário de possivelmente todas as vertentes carnais do amor, nas suas fases, etapas, idades, e até após a morte. Real, realíssimo, tão verdadeiro que constrange.

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