
Na força dos teus 17, há seis anos
* Por Urariano Mota
Se a flor na sua pétala, se a pétala na sua maciez, se a maciez na sua delicadeza, e na sua cor, e na festa de formas e encantos para os olhos... (Faço pausa para respirar e ver e mirar e cravar mais preciso.) Se a graça do perfume que têm as flores, se tudo o que em um jardim é felicidade, se às formas florais juntássemos as formas musicais, nem assim os cheiros, dos mais suaves aos agrestes, nem assim as gradações de luz e sombra, do azul escuro ao vermelho inesquecível, nem assim os feitiços, das bruxas imaginárias aos laços ardilosos da natureza, teriam a graça e o movimento e a cor e a música dos teus 17 anos.
Se o coral é vermelho, há quem se espante. Se as pétalas em sua alquimia, em seu laboratório e cornucópia sufocam-nos, há quem se espante. Um raio que caísse agora e nos matasse, neste exato instante em que escrevo “um raio que caísse agora...”, muita gente disso se espantaria. Sem palavras, no entanto, deveríamos ficar ante esse maior espanto: um desabrochar que da flor guarda a semelhança deste verbo, desabrochar, um ser, que é uma pessoa mais importante que a preservação das florestas amazônicas, mais séria e organizada que a sobrevivência de todo pantanal, das garças às borboletas, das rãs que pulam no rio aos jacarés que passeiam com pássaros a bordo, uma senhorita mais fundamental que a sobrevivência nossa, dos chineses aos esquimós, dos mongóis aos europeus, dos negros aos caucasianos, por que disto ninguém se espanta?
Escrevo a interrogação acima e este escrever me envergonha. Porque sei que não deveria escrevê-la, porque sei que assim me exibo mesquinho e estúpido e pequeno e burro, quando apenas queria dizer o maravilhoso do meu amor por esta senhorita. Deveria haver um limite entre o sublime e o ridículo. Mas deveria ser, compreendo, mais ridículo ainda o indivíduo que respeitasse esse limite. “Daqui não passas”, diria a fronteira, “ou cairás na loucura, e na absoluta idiotia”. Ah, senhor guarda fronteiriço, viver só vivemos uma vez, e não vale a pena continuar no bom senso, no burocrático sensato ponderado, quando a maravilha é beber no horizonte que se descortina. Porque tenho diante de mim este sublime:
Eu vejo aquela criancinha que veio ao mundo miudinha se transformar numa jovem que põe os óculos sobre o nariz, e, com a pontinha do nariz assim erguido, declara que vai estudar Filosofia. Ah, senhor guarda de fronteira, considere que a gentil mocinha sequer conhece a complexidade de Kant e Hegel, sim, mas de imediato isso desconsidere, porque ela mistura o belo e o pensar numa fecunda intuição, e por isso mistura filosofia a poesia, sem se preocupar com os métodos pesados e distintos objetos e gêneros. E porque gosta de poesia, acha muito interessante, e original, e à altura do sonhador peito e perfil, acrescentar essa rima do pensamento livre, poesia, filosofia, sem fronteiras. Por que a essa mudança, transformação, metamorfose, mais complexa e imprevisível que a da natureza da fauna e da flora, ninguém se espanta?
Por isso retomo, apenas como uma aproximação de um fenômeno mais complexo, delicado:
Se o tempo parasse agora, nesta exata clara manhã. Se a orquídea fosse a mesma orquídea hoje e sempre. Se o movimento das pétalas, se as cores das macias pétalas, se as formas e os perfumes e o frescor das pétalas fossem eternas, se este encanto para os olhos fosse imorredouro, ah, nem assim a orquídea, a rara flor do campo atingiria a graça do ser que és, menina que deixas a infância.
Ouço o teu riso lá fora, e isso me desperta uma contraditória afeição. O teu riso para mim é um bem que me enche de felicidade. O teu riso para outros, como agora no portão, me cobre um véu escuro, me deixa um pouco órfão, porque dele não sou o destinatário. Porque nem só de amor somos feitos, menina que deixou a infância. Também somos feitos de mágoa, raiva, sexo e incompreensão. De todo esse lixo e rebotalho, que não percebes, enquanto sorris e gritas ao portão. Por isso me falta a coragem de ir ver para quem sorris e gargalhas. E me consolo, a me dizer, quem recebe o seu sorriso é incapaz de vê-la com as palavras que agora gravo.
No dia do teu aniversário, pediste-me primeiro Neruda. Fiquei contente, exultei. Depois, mais prática, achaste melhor ganhar um par de sapatos. Minha resposta foi um silêncio. Os sapatos se gastam, eu não te disse, porque talvez eu não fosse compreendido. Nada te dei. Agora espero que ao fim destas linhas me compreendas. Porque assim te saúdo:
Luanda de Angola, Luanda dos negros, Luanda de todas as raças, esta canção é o presente que te fiz na força dos teus 17 anos.
• Escritor e jornalista
* Por Urariano Mota
Se a flor na sua pétala, se a pétala na sua maciez, se a maciez na sua delicadeza, e na sua cor, e na festa de formas e encantos para os olhos... (Faço pausa para respirar e ver e mirar e cravar mais preciso.) Se a graça do perfume que têm as flores, se tudo o que em um jardim é felicidade, se às formas florais juntássemos as formas musicais, nem assim os cheiros, dos mais suaves aos agrestes, nem assim as gradações de luz e sombra, do azul escuro ao vermelho inesquecível, nem assim os feitiços, das bruxas imaginárias aos laços ardilosos da natureza, teriam a graça e o movimento e a cor e a música dos teus 17 anos.
Se o coral é vermelho, há quem se espante. Se as pétalas em sua alquimia, em seu laboratório e cornucópia sufocam-nos, há quem se espante. Um raio que caísse agora e nos matasse, neste exato instante em que escrevo “um raio que caísse agora...”, muita gente disso se espantaria. Sem palavras, no entanto, deveríamos ficar ante esse maior espanto: um desabrochar que da flor guarda a semelhança deste verbo, desabrochar, um ser, que é uma pessoa mais importante que a preservação das florestas amazônicas, mais séria e organizada que a sobrevivência de todo pantanal, das garças às borboletas, das rãs que pulam no rio aos jacarés que passeiam com pássaros a bordo, uma senhorita mais fundamental que a sobrevivência nossa, dos chineses aos esquimós, dos mongóis aos europeus, dos negros aos caucasianos, por que disto ninguém se espanta?
Escrevo a interrogação acima e este escrever me envergonha. Porque sei que não deveria escrevê-la, porque sei que assim me exibo mesquinho e estúpido e pequeno e burro, quando apenas queria dizer o maravilhoso do meu amor por esta senhorita. Deveria haver um limite entre o sublime e o ridículo. Mas deveria ser, compreendo, mais ridículo ainda o indivíduo que respeitasse esse limite. “Daqui não passas”, diria a fronteira, “ou cairás na loucura, e na absoluta idiotia”. Ah, senhor guarda fronteiriço, viver só vivemos uma vez, e não vale a pena continuar no bom senso, no burocrático sensato ponderado, quando a maravilha é beber no horizonte que se descortina. Porque tenho diante de mim este sublime:
Eu vejo aquela criancinha que veio ao mundo miudinha se transformar numa jovem que põe os óculos sobre o nariz, e, com a pontinha do nariz assim erguido, declara que vai estudar Filosofia. Ah, senhor guarda de fronteira, considere que a gentil mocinha sequer conhece a complexidade de Kant e Hegel, sim, mas de imediato isso desconsidere, porque ela mistura o belo e o pensar numa fecunda intuição, e por isso mistura filosofia a poesia, sem se preocupar com os métodos pesados e distintos objetos e gêneros. E porque gosta de poesia, acha muito interessante, e original, e à altura do sonhador peito e perfil, acrescentar essa rima do pensamento livre, poesia, filosofia, sem fronteiras. Por que a essa mudança, transformação, metamorfose, mais complexa e imprevisível que a da natureza da fauna e da flora, ninguém se espanta?
Por isso retomo, apenas como uma aproximação de um fenômeno mais complexo, delicado:
Se o tempo parasse agora, nesta exata clara manhã. Se a orquídea fosse a mesma orquídea hoje e sempre. Se o movimento das pétalas, se as cores das macias pétalas, se as formas e os perfumes e o frescor das pétalas fossem eternas, se este encanto para os olhos fosse imorredouro, ah, nem assim a orquídea, a rara flor do campo atingiria a graça do ser que és, menina que deixas a infância.
Ouço o teu riso lá fora, e isso me desperta uma contraditória afeição. O teu riso para mim é um bem que me enche de felicidade. O teu riso para outros, como agora no portão, me cobre um véu escuro, me deixa um pouco órfão, porque dele não sou o destinatário. Porque nem só de amor somos feitos, menina que deixou a infância. Também somos feitos de mágoa, raiva, sexo e incompreensão. De todo esse lixo e rebotalho, que não percebes, enquanto sorris e gritas ao portão. Por isso me falta a coragem de ir ver para quem sorris e gargalhas. E me consolo, a me dizer, quem recebe o seu sorriso é incapaz de vê-la com as palavras que agora gravo.
No dia do teu aniversário, pediste-me primeiro Neruda. Fiquei contente, exultei. Depois, mais prática, achaste melhor ganhar um par de sapatos. Minha resposta foi um silêncio. Os sapatos se gastam, eu não te disse, porque talvez eu não fosse compreendido. Nada te dei. Agora espero que ao fim destas linhas me compreendas. Porque assim te saúdo:
Luanda de Angola, Luanda dos negros, Luanda de todas as raças, esta canção é o presente que te fiz na força dos teus 17 anos.
• Escritor e jornalista
Urariano,
ResponderExcluirGostei do texto poético que exprime sentimentos íntimos, e procura comunicar as emoções do poeta.
Parabéns escritor-poeta!
Abração do,
José Calvino
RecifeOlinda
Também não me incomodo de transpor os umbrais da sensatez e invadir o ridículo, ao escancarar minha tietagem explícita a esta passagem de gênio.
ResponderExcluirPermita-me transcrevê-la na íntegra: " Porque sei que não deveria escrevê-la, porque sei que assim me exibo mesquinho e estúpido e pequeno e burro, quando apenas queria dizer o maravilhoso do meu amor por esta senhorita. Deveria haver um limite entre o sublime e o ridículo. Mas deveria ser, compreendo, mais ridículo ainda o indivíduo que respeitasse esse limite. “Daqui não passas”, diria a fronteira, “ou cairás na loucura, e na absoluta idiotia”.
Clap, clap, clap.
Viva, Calvino. Viva, Mara.
ResponderExcluirA generosidade de vocês lembra Luanda.
Muito obrigado.
Abraços.
Urariano
ResponderExcluirEste presente vale mais que toda uma fábrica de sapatos, que um livro de Neruda que ela poderá, ela mesma, comprar na primeira livraria que encontrar. Este texto não. É dela, para ela, do homem que ela mais ama: seu pai. Parabéns a você e a sua menina!
Abraços
Grato, Risomar. O quanto essa menina me dá trabalho!....
ResponderExcluirAbraço.