terça-feira, 17 de agosto de 2010




Retoquem os lábios de Titina

* Por Eduardo Murta

O símbolo do batom redesenhando os lábios estava para além da arquitetura das vaidades em Titina. Era, já aos 7 anos, a versão simplificada da aura feminina. Como ela sonhava com aquele encontro. E, diabo, não herdaria arrependimento maior que o de ter confidenciado isso ao pai. Se recorda dos bigodes quase crepitarem em furor, trêmulos, a voz grave e a moldura do olhar como que a fuzilando.

Mesmo novinha, não tropeçava em significados: a reação era sinônimo de que caíra em maldição irreparável. Alinhou convicções logo à tarde, quando Coronel Isidoro retornou da cidade. Adentrou a fazenda sem o buzinaço tradicional e apontou-lhe o dedo indicador assim que meteu o rostinho à janela. Sinalizou que entrasse. Sem pestanejar.

E o pior viria em seguida. Família reunida à mesa, estendeu-lhe o pacote pardo. Tremeu à constatação. Milhos. Sequer retrucou. Tomou às mãos, se dirigiu ao quarto do meio, o dos castigos. Ajoelhou-se aos bagos maduros. Rosto virado para a parede, como recomendado. Chorou, à margem de se derreter. Só saiu perto da meia-noite, mãe e irmãos implorando. Jurou daí alimentar um plano que a pusesse fora de casa.

Os 12 anos chegando, dava jeito de se enroscar às irmãs mais velhas para as incursões à cidade. Mendigava uma chance. Iria, sim, mas sob promessa de estrita vigilância. E, dissimulada, em escolhas a esmo, buscava os olhos masculinos. Se insinuava. Face de bonequinha, fazia ar de candura e, ao final, desarmava sorriso e carregava em malícia na piscadela. Aprendera com prima Lisboa, que beirava os 17.

E a professorinha clandestina ensinara mais. Algo que faria corar os recatados. Um roçar de língua ao entorno da boca. Gesto felino. Nas rodas do colégio de freiras, as colegas eram taxativas: não havia homem que resistisse. Os sinais estavam, no fundo, era enlouquecendo os machos do lugar. Sem saber se correspondiam à provocação infantilmente desconcertante ou se batiam ponto no clube de lealdade ao coronel.

Fizessem assim, entregariam a cabeça da menina em bandeja à severidade do pai. E, tesão bafejado pelos demônios, talvez jamais soubessem o aroma daquelas coxas que já se desenhavam belas em Titina. Foi que, dia seguinte, cedo se formou espera à varanda do fazendão. Ninguém dizendo a ninguém por que estava ali. Mas todos pedindo audiência ao velho Isidoro.

Tião, açougueiro, quarentão barbado. Simões, agiota, mascador de fumo. Cento e trinta quilos. Suélio, carola, dono de armarinho. Considerações ao pé do ouvido, chapéu recolhido ao peito, parecia ritual ensaiado. O que se pedia, invocando segredo em eventual recusa, era bênção para o casamento. Coronel espantado com o deslumbramento, se perguntando se a filha inflara aqueles desejos... Entrelaçou as pontas do bigode. Prometeu respostas numa semana. Melhor seria logo selar destino seguro à pequena. Convocou então Suélio, recatado, pijamão.

Festança, porco no rolete, novilha, cachaçada, Titina partiu. Véu e grinalda, rumou à casa do marido. Ensaiava serenidade, pulsava ânsia. À entrada, pronto ganhou o que elegera como presente: caixa de chocolates e o sonhado batom. Repassou ponto a ponto o plano ditado pela prima. Insinuou estilo dominadora e, em minutos, estava lá o carola: só em meias (eram brancas), pés e mãos atados à cama. Ela sorriu menina, comeu o primeiro bombom. O segundo, o terceiro. Gargalhou. Pintou os lábios num vermelho desbragado. Fugiu de bicicleta. Os gritos de Suélio, em desespero, e os dela, em festa, atravessaram a noite. Fizeram eco. Viraram lenda.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

Um comentário:

  1. Nem poderia ser de outra forma. O pedófilo teve o que merecia: papel de otário. Texto tão gostoso quanto a traquinagem de Titina. Haja caroço de milho para ajoelhar agora. Mas noutro lugar, bem longe, de preferência.

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