sábado, 28 de agosto de 2010




Sobre Copa, imprensa e preguiça

* Por André Falavigna

Não há, sem dúvida nenhuma, dentro das atividades humanas, um terreno tão propício ao florescimento de imbecilidades como o da crônica esportiva. E, dentre os esportes, não há nenhum que se preste tão formidavelmente ao plantio de jacas reluzentes como o futebol. Restringindo um pouco mais ainda nosso campo de observação, não há período mais fecundo para a colheita de fezes verbais do que o da Copa do Mundo. Eu digo, e vou provar.

Antes de tudo, é importante dizer o seguinte: eu amo futebol. Não seria quem sou se não fosse o futebol. O futebol, o universo do futebol, é para mim como que um plano à parte, uma fonte de lazer inesgotável, um pequeno mundo de referências indispensáveis à minha pequenina existência e, de uma forma muito estranha, uma espécie de um mais estranho ainda oráculo pessoal e lúdico. Como seria de se esperar de alguém tão ligado a um determinado assunto, eu tendo a me irritar bastante quando tratam a coisa sem carinho. E, no caso do futebol, o relaxo é a regra. Vejam só: há uma quantidade imensa de pessoas que tiram seu ganha pão do futebol. Para que exerçam suas funções exige-se delas que reservem grande parte de seu tempo para ver jogos de futebol. Um sacrifício danado. E tem gente que faz de má vontade.

Nunca houve mesas-redondas tão mau-humoradas na televisão brasileira. É chato dizer, muita gente se ofende, mas uma mesa-redonda só funciona se estiver parecida com uma conversa de boteco. Quando parece um colóquio de sábios, torna-se verdadeiramente uma merda. Não estou dizendo que o futebol não se trata de um assunto sério, pelo menos em certa medida. Se eu achasse isso, não me irritava. Mas o caso é que as pessoas que tratam do assunto como se estivessem tratando de um assunto que elas, supostamente, tomam por sério, têm sido nos últimos vinte anos as que mais falam barbaridades acerca do nosso joguinho bom.

Para começar: ninguém vai ao arquivo. Se fosse, poderia conferir que três quartos dos vaticínios peremptórios que formulou ao longo da vida excluem completamente qualquer chance de validade de nove décimos dos vaticínios peremptórios que tem formulado hoje. Com a maior cara-de-pau do mundo, enterram Ronaldo três ou quatro vezes por ano para, depois, espantarem-se com o poder de reação sujeito. Não era hora de começar a reavaliar a própria capacidade de avaliação? Para terminar: nas últimas três Copas do Mundo, a seleção foi posta abaixo de cu de cachorro pela crítica e, invariavelmente, chegou à final. Devíamos combinar o seguinte: vamos levantar os nomes de todos os especialistas que, nesse período, em seus prognósticos, não incluíram o Brasil entre os favoritos e que, com convicção constrangedora, achincalharam a equipe. Vamos conferir quem foi capaz da proeza três vezes, consecutivamente. E vamos sugerir que se especializem em outra coisa. Eu, pessoalmente, estou de saco cheio de em janeiro ouvir que o futebol brasileiro é decadente para, no julho seguinte, dar de cara com elogios desmesurados ao hegemônico futebol brasileiro. É muita empulhação.

O pior não é isso: o pior é encontrar gente que acredita que o maior problema do jornalismo esportivo no Brasil é o merchandising. Chega a ser engraçado. Eu estou me lixando para o merchandising. No rádio até que é divertido. Na televisão, às vezes irrita, mas só porque interrompe o programa. E eu com isso? Eu quero é que o sujeito, antes de sair por aí comentando futebol, confira pelo menos se o que ele está dizendo faz sentido. Confira se as referências das quais ele lança mão são verdadeiras, se o que ele diz do passado é verdadeiro. Que ele não fale as coisas de orelhada, e que goste mais de futebol do que posar de estudioso. Merchandising é um problema ético? Não sei, nem parei para pensar. Há muita discussão em torno do assunto, que talvez até seja importante. E daí? Se um sujeito não consegue conferir as coisas que diz a respeito do único assunto para o qual se lhe pede atenção, como é que ele se acha capaz de julgar, condenar e reconstruir o mundo? Os jornalistas esportivos do Brasil, com honrosas exceções, não conseguiram identificar o time brasileiro, desde 94, como um dos favoritos ao título. Não conseguiram, portanto, falar de futebol. Querem falar de ética? O sujeito não se dá ao trabalho de verificar se o que ele diz acerca do passado é ou não correto, e me arrota as maiores metafísicas? Não sabe fazer a letra “o” com um copo, e quer me convencer que detém conhecimentos herméticos sobre uma ciência oculta? Por que não vai pastar?

Vamos combinar o seguinte: futebol é para se divertir, mas é também um traço da nossa cultura que, pelo menos, não nos faz passar vergonha. Pelo contrário: dá-nos uma sensação estranha, incomum, de que podemos fazer coisas grandes. De que podemos ser grandes. De que, de algum modo, podemos deixar nossa marca neste mundo. O futebol é uma metáfora do que é possível. Portanto, vamos aproveitar a coisa. Se você vive em torno do futebol, pelo amor de Deus, desprenda-se e se divirta. Não é porque você é jornalista esportivo que precisa ser relaxado e porco. As pessoas prestam mais atenção ao que você diz do que no que diz a Miriam Leitão (se isso é bom ou ruim, não é problema seu: de alguma coisa você tinha que viver, e o futebol ainda não foi criminalizado). Respire fundo antes de falar. Assista aos jogos com calma e não tire conclusões que o obrigarão a desmentir-se dez minutos depois. Essa mania de afirmar coisas as mais absurdas em tom definitivo com dez minutos de jogo faz de você um imbecil e o vicia nisso. Aquela outra mania de achar que um time que perdeu sempre jogou mal e que todos os gols do mundo revelam algum tipo de falha de alguém ou de algum sistema, ela torna-o um perfeito filha de uma puta. Elogiar, automaticamente, a seleção da Holanda ou o São Paulo Futebol Clube não é um pré-requisito de sua profissão. Falar mal, automaticamente, de Mustafá Contoursi ou de Eurico Miranda também não. Telê Santana era humano e errava uma barbaridade. O Pelé tem direito à opinião. As palavras “profissional” e “moderno” não são sinônimos de “eficiente”, “bom” e ”lindo-maravilhoso”. Aproveite a vida, amigo. Seu trabalho é uma delícia. Se você não gosta, ou não o acha importante, não precisa fazê-lo mal feito. Vá cobrir o Congresso. Sabe como é: quem gosta de falar sobre política está mais acostumado à porcaria.

* André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

Um comentário:

  1. Palavrões como argumentação para vencer o mau-humor. Entre o pesado e o lúdico, foi possível compreender e sorrir. Efeito alcançado. Coragem tem uma mulher para entrar nessa conversa. Não resisti.

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