

Escola Pública
* Por Urariano Mota
* Por Urariano Mota
O acesso à escola se dá por terrenos enlameados. Esses terrenos são cercados por um alto e longo muro, que se abre em dois portões.
Ela não tem janelas, nem jardins, nem hall, nem luzes. É um comprido retângulo, de escura reclusão. No alto das paredes fendem-se combogós, que filtram um ar que não circula. O ar bate e definha em torno do verde, grosso, escuro, do quadro da sala de aula. Nas salas enfermas, se a vida fosse uma pintura de tons enevoados onde o ambiente mortiço pudesse gerar seres lânguidos, esmaecidos, em duas dimensões, se a vida fosse um quadro simples, seria de se esperar alunos e mestres deprimidos, acabrunhados, em declínio. Mas não. Nas salas enfermas tem-se apenas um tormento, de alunos que sofrem e de professores que sofrem, em conflito. É como se num palco de guerra, com fogo ardendo em redor, com o cerco inimigo se fechando, um oficial e um subalterno ignorassem o palco, e se machucassem mutuamente, porque sentem o desconforto, que vem crescendo.
A voz da diretora é aguda e áspera. Pode-se dizer que a voz escolheu a pessoa para nela se vestir. Ela, a dona da voz, é baixinha, meio encorpada, e de boa dicção, se por isso queremos realçar o tom afetado de pronunciar insuportavelmente as sílabas, da maneira como se escrevem. Os erres dobrados são carrrros de erres de trem, o mal com L vem como uma caricatura nordestina do L do gaúcho dos pampas. Ainda que contra a sua vontade, tudo nela é caricatural. Os pronomes oblíquos vêm colocados como exemplos abonadores de uma lição de Antenor Nascentes. Que também parece abonar o artigo, o substantivo, o numeral e verbo de sua pronunciada elegância. Entenda-se a elegância: ao vermelho farto do rosto, a senhora diretora chameja-o com acentos de camadas de ruge. Aos lábios grossos ela retoca-os de batom tinto, como um coágulo, para deixá-los mais exuberantes. E a roupa... lembra um conjunto de feiticeiras no Havaí, em noite de festa: saias justas, verde claro, com o detalhe infernal de se entreabrirem lascadinhas no tornozelo. A justeza das saias termina por fazer justiça a um traseiro tão volumoso que é de se prever um ventre igualmente bojudo na frente. Mas ele, o abdômen, se planifica. É que uma cinta lhe prende a barriga, o que acarreta a soltura com mais força de gases reprimidos, pela garganta. Daí talvez a dicção.
A blusa, de forte estampado, com um lacinho gracioso à altura do pescoço, tem um casaquinho sem mangas, verde como as saias, aberto como as cortinas sobre um palco. O efeito é de uma cena sem atores, com cenários ao fundo, berrantemente floridos. O espetáculo, no entanto, fica acima das cortinas, ou do casaco, onde uma cabeça vermelha, de cabelos acaju, move-se com espantosa autonomia do lacinho ao pescoço.
Estamos todos numa sala de aula. Dois ventiladores circulam no ar abafado, de duas lâmpadas fluorescentes sobre mais de trinta rústicas carteirinhas. Sobraram mães e alunos em pé, mas professores que compareceram estão todos sentados, ao lado do birô, como num corpo de jurados. A diretora se levanta. Vai começar a reunião de pais e mestres.
• Eu convidei os senhores a esta reunião para discutir os seguintes assuntos. Em primeiro lugar, do estado em que nos achamos nestes últimos tempos em nossa escola. Em segundíssimo lugar... do que se nos aponta para o futuro. E por último, um brevíssimo relato da ordem que é de nossa competência exigir...mos, ou melhor, exigirrrr, e da indisciplina moleque, de alguns, não de todos, que se esbaldam na anarquia. (Toma fôlego) E como o terceiro ponto tem a ver com o segundo, que tem a ver com o primeiro, e tudo tem a ver com a pedagogia... vamos começar pela anarquia.
• Somos contra o fumo. Um cigarro pendurado no bico acompanha-se de gíria, tu, você, muita intimidade e deboche. Mãz... somos liberais. Eu não me posso consentir uma ordem que mande os fumantes para dentro do banheiro. Aí a coisa iria ser bem pior... imaginem... fezes, urina, com um cigarro escondidinho... então, quem quiser estragar sua saúde que vá para os corredores... ordenadamente, no intervalo, ou numa aula vaga: or-de-na-da-men-te. (Toma fôlego) Os senhores pais, ou responsáveis, sintam o tipo de massa bruta com que trabalhamos neste educandário. Não agravando a todos, é claro. Pois bem... Ainda a semana passada, não foi, Rosinha? (A cabeça gira em direção ao corpo de jurados, e depois volta, sobre o laço em flor) Ainda a semana passada, a luz se foi, com-ple-ta-men-te. O breu. O breu nos caiu por cima. Pois sabem o que... nossos “rrrrapazinhos” e “mocinhas” atentaram? ARMARAM FOGUEIRAS DE PAPÉIS E QUEIMARAM NOSSO MATERIAL DIDÁTICO! Deste mesmo aí, que ainda sobrou nas paredes.
A diretora, com seu dedinho carnoso, indica os restos didáticos, colocados nas paredes da sala de aula. Seria necessária uma ciência rupestre, para explicá-los: são cartolinas recortadas, pintadas a lápis de cera, com desenhos de ursinhos, oncinhas, ratinhos Mickey e patinhos Donald. Essa ciência rupestre não precisaria fazer uma crítica plástica, de como são toscos aqueles desenhos: bastava-lhe explicar que relações guardam entre si o Mickey e o pato Donald com a oncinha e o ursinho, e que relações o Mickey, o pato Donald, a oncinha e o ursinho guardam com os professores na sala de aula. E de como a diretora se move, como uma inscrição que saltou das doces figurinhas coladas nas paredes.
• O muro. Vamos pelo muro. Vejam só os senhores a comunidade que se nos apresenta. Vejam só os moleques, os anarquistas. Não agravando a todos, é claro. Aqui tem muita gente de bem... Pois eu, Eu já construí, e eles derrubaram o muro, por três vezes. Estou levantando-o pela quarta. Sem nenhuma ajuda do Fundo de Conservação das Escolas. Sem nenhuma ajuda do Goverrrrno. (Toma fôlego) Vejam nossa escola. Vejam como ela esta bonitinha, limpa, pintadinha. Um brinco. Não me perguntem, que não lhes direi, quem foi que pagou a conta. O tempo é quem vai dizer. Deus me pagará.
O silêncio na sala arde. A platéia, composta de pais de alunos, humildes, e de alunos adolescentes, alguns já rebeldes, com uma pontinha de mofa nos lábios, a platéia, em seu conjunto, está a meio caminho entre bater palmas à digníssima diretora ou de lhe prestar uma abafada, tímida, desordenada e traiçoeira vaia. A diretora continua em pé, respirando curto, como se chegasse de uma grande corrida, ou como se guardasse a custo uns desaforos de romper a cinta e o sutiã. Mas ela se contém, e suaviza o ar pesado, por ela mesma montado, com sorriso postiço, de aprendiz.
• Continuando nossa reunião, passemos agora à professora Rosinha, de História. Ela vai usar um método diferente, bem mais moderno. Uma técnica do Dr. Paulo Freire.... Professora? , por favor.
Do corpo de jurados ergue-se então a professora Rosinha. Que lança como um tiro seco, ao público aprisionado:
• Qual a escola dos seus sonhos?
O teto não desaba.
Ela não tem janelas, nem jardins, nem hall, nem luzes. É um comprido retângulo, de escura reclusão. No alto das paredes fendem-se combogós, que filtram um ar que não circula. O ar bate e definha em torno do verde, grosso, escuro, do quadro da sala de aula. Nas salas enfermas, se a vida fosse uma pintura de tons enevoados onde o ambiente mortiço pudesse gerar seres lânguidos, esmaecidos, em duas dimensões, se a vida fosse um quadro simples, seria de se esperar alunos e mestres deprimidos, acabrunhados, em declínio. Mas não. Nas salas enfermas tem-se apenas um tormento, de alunos que sofrem e de professores que sofrem, em conflito. É como se num palco de guerra, com fogo ardendo em redor, com o cerco inimigo se fechando, um oficial e um subalterno ignorassem o palco, e se machucassem mutuamente, porque sentem o desconforto, que vem crescendo.
A voz da diretora é aguda e áspera. Pode-se dizer que a voz escolheu a pessoa para nela se vestir. Ela, a dona da voz, é baixinha, meio encorpada, e de boa dicção, se por isso queremos realçar o tom afetado de pronunciar insuportavelmente as sílabas, da maneira como se escrevem. Os erres dobrados são carrrros de erres de trem, o mal com L vem como uma caricatura nordestina do L do gaúcho dos pampas. Ainda que contra a sua vontade, tudo nela é caricatural. Os pronomes oblíquos vêm colocados como exemplos abonadores de uma lição de Antenor Nascentes. Que também parece abonar o artigo, o substantivo, o numeral e verbo de sua pronunciada elegância. Entenda-se a elegância: ao vermelho farto do rosto, a senhora diretora chameja-o com acentos de camadas de ruge. Aos lábios grossos ela retoca-os de batom tinto, como um coágulo, para deixá-los mais exuberantes. E a roupa... lembra um conjunto de feiticeiras no Havaí, em noite de festa: saias justas, verde claro, com o detalhe infernal de se entreabrirem lascadinhas no tornozelo. A justeza das saias termina por fazer justiça a um traseiro tão volumoso que é de se prever um ventre igualmente bojudo na frente. Mas ele, o abdômen, se planifica. É que uma cinta lhe prende a barriga, o que acarreta a soltura com mais força de gases reprimidos, pela garganta. Daí talvez a dicção.
A blusa, de forte estampado, com um lacinho gracioso à altura do pescoço, tem um casaquinho sem mangas, verde como as saias, aberto como as cortinas sobre um palco. O efeito é de uma cena sem atores, com cenários ao fundo, berrantemente floridos. O espetáculo, no entanto, fica acima das cortinas, ou do casaco, onde uma cabeça vermelha, de cabelos acaju, move-se com espantosa autonomia do lacinho ao pescoço.
Estamos todos numa sala de aula. Dois ventiladores circulam no ar abafado, de duas lâmpadas fluorescentes sobre mais de trinta rústicas carteirinhas. Sobraram mães e alunos em pé, mas professores que compareceram estão todos sentados, ao lado do birô, como num corpo de jurados. A diretora se levanta. Vai começar a reunião de pais e mestres.
• Eu convidei os senhores a esta reunião para discutir os seguintes assuntos. Em primeiro lugar, do estado em que nos achamos nestes últimos tempos em nossa escola. Em segundíssimo lugar... do que se nos aponta para o futuro. E por último, um brevíssimo relato da ordem que é de nossa competência exigir...mos, ou melhor, exigirrrr, e da indisciplina moleque, de alguns, não de todos, que se esbaldam na anarquia. (Toma fôlego) E como o terceiro ponto tem a ver com o segundo, que tem a ver com o primeiro, e tudo tem a ver com a pedagogia... vamos começar pela anarquia.
• Somos contra o fumo. Um cigarro pendurado no bico acompanha-se de gíria, tu, você, muita intimidade e deboche. Mãz... somos liberais. Eu não me posso consentir uma ordem que mande os fumantes para dentro do banheiro. Aí a coisa iria ser bem pior... imaginem... fezes, urina, com um cigarro escondidinho... então, quem quiser estragar sua saúde que vá para os corredores... ordenadamente, no intervalo, ou numa aula vaga: or-de-na-da-men-te. (Toma fôlego) Os senhores pais, ou responsáveis, sintam o tipo de massa bruta com que trabalhamos neste educandário. Não agravando a todos, é claro. Pois bem... Ainda a semana passada, não foi, Rosinha? (A cabeça gira em direção ao corpo de jurados, e depois volta, sobre o laço em flor) Ainda a semana passada, a luz se foi, com-ple-ta-men-te. O breu. O breu nos caiu por cima. Pois sabem o que... nossos “rrrrapazinhos” e “mocinhas” atentaram? ARMARAM FOGUEIRAS DE PAPÉIS E QUEIMARAM NOSSO MATERIAL DIDÁTICO! Deste mesmo aí, que ainda sobrou nas paredes.
A diretora, com seu dedinho carnoso, indica os restos didáticos, colocados nas paredes da sala de aula. Seria necessária uma ciência rupestre, para explicá-los: são cartolinas recortadas, pintadas a lápis de cera, com desenhos de ursinhos, oncinhas, ratinhos Mickey e patinhos Donald. Essa ciência rupestre não precisaria fazer uma crítica plástica, de como são toscos aqueles desenhos: bastava-lhe explicar que relações guardam entre si o Mickey e o pato Donald com a oncinha e o ursinho, e que relações o Mickey, o pato Donald, a oncinha e o ursinho guardam com os professores na sala de aula. E de como a diretora se move, como uma inscrição que saltou das doces figurinhas coladas nas paredes.
• O muro. Vamos pelo muro. Vejam só os senhores a comunidade que se nos apresenta. Vejam só os moleques, os anarquistas. Não agravando a todos, é claro. Aqui tem muita gente de bem... Pois eu, Eu já construí, e eles derrubaram o muro, por três vezes. Estou levantando-o pela quarta. Sem nenhuma ajuda do Fundo de Conservação das Escolas. Sem nenhuma ajuda do Goverrrrno. (Toma fôlego) Vejam nossa escola. Vejam como ela esta bonitinha, limpa, pintadinha. Um brinco. Não me perguntem, que não lhes direi, quem foi que pagou a conta. O tempo é quem vai dizer. Deus me pagará.
O silêncio na sala arde. A platéia, composta de pais de alunos, humildes, e de alunos adolescentes, alguns já rebeldes, com uma pontinha de mofa nos lábios, a platéia, em seu conjunto, está a meio caminho entre bater palmas à digníssima diretora ou de lhe prestar uma abafada, tímida, desordenada e traiçoeira vaia. A diretora continua em pé, respirando curto, como se chegasse de uma grande corrida, ou como se guardasse a custo uns desaforos de romper a cinta e o sutiã. Mas ela se contém, e suaviza o ar pesado, por ela mesma montado, com sorriso postiço, de aprendiz.
• Continuando nossa reunião, passemos agora à professora Rosinha, de História. Ela vai usar um método diferente, bem mais moderno. Uma técnica do Dr. Paulo Freire.... Professora? , por favor.
Do corpo de jurados ergue-se então a professora Rosinha. Que lança como um tiro seco, ao público aprisionado:
• Qual a escola dos seus sonhos?
O teto não desaba.
• Escritor e jornalista
Estive em algumas escolas públicas recentemente. A sua descrição está perfeita. A diretora é caricatura pelo motivo de serem assim as digníssimas coordenadoras gerais.
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