quinta-feira, 17 de dezembro de 2009




Chama do ideal

* Por Pedro J. Bondaczuk


O fogo desperta-me um fascínio todo especial há muito tempo, desde a meninice, desde quando era muito pequeno e tomei consciência da minha pessoa e do mundo. Fascinação e terror são os sentimentos que na verdade me produz. Em criança, no interior do Rio Grande do Sul, eu vivia na fazenda do meu avô paterno, em Horizontina, perto da fronteira com a Argentina. À noite, costumava sentar-me ao redor de uma fogueira com os peões para ouvir suas histórias fantásticas sobre a cobra boitatá, a mula-sem-cabeça, o Negrinho do Pastoreio e outras, para comer churrasco, para tomar chimarrão e para dar asas à fantasia. Sonhava, sonhava, sonhava desesperadamente com constelações, com mundos, com universos distantes.

Lembro-me que meu olhar se fixava nas chamas que crepitavam, como que hipnotizado. Ficava horas ouvindo os casos (que hoje entendo que eram, em sua maioria, inventados, como se fossem contos expostos oralmente) narrados por aqueles homens rudes e simples, mas de imaginação fértil, e me aquecendo, até que minha mãe viesse me chamar para dormir.

Naquele tempo, em 1949, não havia ainda televisão no Brasil. O primeiro canal seria inaugurado um ano depois, por Assis Chateaubriand: a TV Tupi de São Paulo. Minha família possuía um rádio, enorme, de três faixas de onda, que era ligado apenas duas vezes por dia: pela manhã, para ouvir os programas sertanejos de emissoras brasileiras, ou de música regional, das argentinas; e à noite, para acompanhar notícias. Vez ou outra, acompanhavam-se as transmissões de futebol, quando o Internacional de Porto Alegre ou o River Plate (os dois times pelos quais eu torcia na ocasião) jogavam. A função do rádio, na verdade, era mais decorativa. Além disso, era símbolo de "status".

A diversão por excelência naqueles rincões remotos e perdidos do Brasil, onde se falava correntemente o "portunhol", eram as conversas ao pé do fogo, acompanhadas de churrasco e do indefectível chimarrão. Desde então constatei o talento criativo do brasileiro. Qualquer um daqueles peões, se tivesse acesso ao estudo, se dominasse as regras da escrita e a aplicação da gramática, daria excelente escritor. Romancista, contista ou novelista, não importa. Ou poeta.

Quanta imaginação! Quanto talento perdido, por falta de oportunidades! Os desafios, feitos ao redor da fogueira, entre risos, zangas e algumas altercações, eram maravilhosas obras de arte. Nunca mais, em qualquer lugar por onde passei, encontrei versejadores tão versáteis e criativos como ali, naquele remoto interior do Rio Grande do Sul.

Mas meu assunto de hoje não é esse. O escritor belga J. H. Rosny Ainé, desconhecido no Brasil, no livro "A Guerra do Fogo", lançado entre nós em 1993, definiu com precisão o tema que quero abordar: "Como todos os animais, o fogo precisava de presas: alimentava-se de galhos, relva seca, banha. Crescia. Cada fogo nasce de outros fogos; cada fogo pode morrer. Mas a altura do fogo é ilimitada. O fogo deixa-se dividir em muitas partes, e cada um de seus pedaços pode sobreviver. O fogo enfraquece se for privado de alimento, fica do tamanho de uma abelha, uma mosca, e mesmo assim pode renascer num galhinho de árvore, voltando a ser rapidamente imenso como um pântano. É e não é um animal. Não tem patas nem corpo e consegue vencer o antílope; não tem asas e voa até as nuvens; não tem boca e respira, grunhe, ruge; não tem mãos nem garras e domina terras e mais terras".

O fogo é poderoso e abundante. É o facho das estrelas, que existem aos trilhões, aglutinadas em bilhões de galáxias. E a cada instante, nascem infinidades de novas. Em contrapartida, uma quantidade incalculável de velhas se extingue, ao consumir seu combustível. A luz que o fogo produz devassa a escuridão do imenso vazio do universo. Corpos sem iluminação própria orbitam ao redor dessas estrelas. Em um número desconhecido desses mundos, mas certamente elevado, há probabilidade de existência de vida. Talvez até semelhante à da Terra. Possivelmente como a de animais, de vegetais ou do próprio homem. Tenho a convicção de que não estamos sós no universo.

Comparo o fogo aos ideais que algumas pessoas têm e pelos quais sacrificam tudo. Ambos precisam de combustível para continuar a arder. Os dois podem renascer de microscópicas partículas se enfraquecidos. Tanto um quanto o outro consomem o que tocam. Daí meu fascínio pelo fogo...E pelos ideais...

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com

4 comentários:

  1. O fogo curtido na tua infância não era curtido na minha, em razão de outra paisagem, outra formação, outro clima. Mas o fogo da metáfora, que alimenta a criação e persistência, sim.
    É o que nos salva, amigo.

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  2. Já eu sou pelas águas desde sempre. De qquer forma, reconheço a nobreza do fogo, sua capacidade de purificação e de transformação.

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  3. Costumo dizer que sou uma Fênix, que se consome
    em chamas para ressurgir mais adiante...
    Fiz essa associação depois de perder uma pessoa
    que amava incondicionalmente...
    Eu sobrevivi...
    Essa é a minha única relação com o fogo, pois
    minha paixão são os ventos...
    Abraços

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  4. Foi do infinitesimal ao infinito estelar. Tão grandioso quanto o fogo. Com ele cozinhamos alimentos, aumentamos a nossa absorção de nutrientes e desenvolvemos ainda mais o nosso encéfalo. Em volta dele podemos ouvir excitantes histórias em criança. Viva o fogo!

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