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Traição
*Por Laís de Castro
Conspurcada a pureza dos lençóis de linho francês, hoje estão na moda os de algodão egípcio, mas naquele tempo só da Europa chegavam, de vapor, todas as maravilhas do mundo. O amante, quem seria o amante... Da boca de uns se ouvia que o velho e permanente suspeito, o motorista, sempre belo e mal posto profissionalmente, mas portando, além da Carteira Profissional de Habilitação, verdes de traiçoeiros olhos de serpente de água e, como uma delas, sabedor de esgueirar-se silenciosamente pela mansão. Da boca de outros, um amigo meio distante do casal, marido da amiga da amiga, estranhamente presente em todos os lugares onde eles estavam, o corpo ereto, magro como uma vara de marmelo, tomador exemplar e moderado de conhaque, o terno sempre negro como os olhos. O rosto, imaculadamente barbeado como os lençóis que conspurcava, (seria ele?) com suas invasões permitidas, proibidas, embebidas em pecados de amor e, acima de tudo, cruéis.
Ao lado do senhor da mansão, do senhor dos bancos, senhor de estradas de ferro (naquele tempo havia muitas, particulares), senhor de virtudes, senhor de senhores, uma mulher pequenina, bela, pálida, de cabelos negros. Os olhos castanhos, sem encantos tamanhos, todavia a pele...ah! a pele era branca como seda, quase transparente como cristal lapidado em nuances róseas, transpirando sensualidade por todos os poros. Recatada socialmente porém, sob os lençóis, um vulcão em erupção. Vovó, portanto, já sentiu volúpia. E era aquela sensualidade que alucinava, todos os dias, aquele senhor dela escravo, em cada passo, cada gesto, cada desorientação, que o pobre homem, meu velho avô naquele momento jovem, vivia desorientado de paixão, de amor, de dúvida, de soberba desacatada aos pés da amada, um ser humano angustiado que parecia prever cada gota da tempestade que viria, como veio e embora todos já imaginem o que seja, vou contar com o suspense necessário a todas as histórias que se contam no mundo.
Vou começar ao contrário e dizer que a pobre avó lá está, enterrada bem longe do marido, num túmulo distante e solitário, mais ninguém se enterrou ali para que o seu castigo fosse além da vida, transcendesse seus dias de respiração, para entrar com ela na eternidade e condená-la à solidão pós-mortem que, aqui entre nós, é uma bobagem porque a velha nem está sabendo disso, certo?
A primeira palavra dessa sentença foi ditada no dia em que o poderoso senhor perdeu um trem e voltou para casa, Como em todo péssimo romance de amor, lá estava o amante, prospectando cada uma das dobras do corpo dela. Lá estavam os dois, misturando-se, esbanjando suores, gritos abafados pelos beijos, enrodilhando-se em cachoeiras de paixão, dividindo os sucos do amor, enfim, impossível descrever o que viu aquele senhor e marido, naquela tarde de sol e calor.
Escureceu-lhe a visão e, quase num tombo imediato, ele conseguiu dar meia volta e sair do quarto iluminado, sentar-se por dois minutos na sala, tomar um copo de água servido pela criada desencontrada, beijar as duas crianças e sair para respirar ar fresco. Era só o que poderia fazer naquele momento para evitar espasmos e desmaios, náuseas e vômitos, pensamentos terríveis e duplo assassinato. Para evitar sangue, embora seus olhos vissem tudo vermelho. Saiu, portanto, para tomar ar fresco, respirou fundo e fez com que o ar inspirado lhe secasse o coração, endurecesse a alma, esvaziasse o cérebro de emoções e sentimentos. Ali, naquele momento, o senhor de tudo e de todos, se tornou uma estátua de pedra.
Retirou-se da cena do crime, sem cometer nenhum crime, com uma dignidade nunca vista e foi ao clube, onde jogou gamão com os seus pares até o fim da tarde. Nenhum nervo de seu rosto deixou entrever os acontecimentos, nenhuma ruga a mais se plantou em seu semblante, nada havia acontecido, exatamente nada e nada aconteceria daqui para a frente, nada mudaria em sua vida e nem na de sua mulher e nem na de seus filhos. Apenas um detalhe seria adicionado: como ele agora era de pedra, não poderia falar. Especificamente com a senhora Marianna, com quem se casara havia uma década e meia e que lhe dera dois filhos, o menino e a menina, ponto. Ponto final é o que estava estaqueando sobre aquela união naquele dia que já era noite quando o engenheiro de quase dois metros de altura, respeitadíssimo por todos, pisou de novo na mansão violada.
Frio, como a pedra em que se tornara, chamou a governanta que estava lá desde o matrimônio e mandou avisar a mulher de que, daquele dia em diante não lhe dirigisse a palavra. E que a recíproca seria verdadeira. Seria um casal para sempre em silêncio, amém.
Que preço começaria a pagar ali minha avó, pelo escapar, pela transgressão, pelo prazer do risco, pela inconseqüência, seja lá o que tivesse acontecido... Que alto preço pagaria aquela jovem de não mais de 32 anos, pelo resto de seus dias... Pior, o resto de seus dias duraria ainda mais seis décadas já que nesta família, além de ninguém mentir (traição é traição, não é mentira) também todos têm uma mania vigorosa de ultrapassar os 90 anos com orgulho e decisão. Onde quer que esteja vais te lembrar desta condenação ao inferno psicológico que te imponho e ao qual te empurro, como uma cela sem barras, uma porta sem chaves, um quintal sem muros mas do qual não podes escapar, ele não disse, porém ela escutou bem e registrou. Esta aflição e este vazio te acompanharão a cada interminável dia, a cada refeição silenciosa e a cada noite de solidão e de frios suores ao lado deste homem de pedra que, afinal, é teu marido.
Falando assim, na língua do tu, parece que tudo se congela em tom maior, mais pomposo e mais dolorido, que o erro capital se multiplica, que a dor se torna ainda mais concreta. Lá estava a pobre ré, deitada ao lado do marido, quase dois metros de altura, belo homem, o corpo moreno abundante de pelos, o fantástico sexo que ela já experimentara, com todo o vigor de seus 36 anos. Lá estava ela ao lado dele, os braços e pernas musculosos, a barba longa e bem aparada como a de D. Pedro I, como convinha a um portentoso espécime do sexo masculino em fins do século XIX e começo do XX. Uma estátua morta. (E ainda por cima sem o amante, que desaparecera no mundo sem deixar resquícios.) O marido, educado, pai de família exemplar, com um orgulho tão marcado e marcante, tão exposto e desolador quanto sua incapacidade de perdão, não perdoei, não perdôo e nem perdoarei jamais quem conspurcou meus lençóis. Assim, ele granjeava os aplausos e o respeito dos machos, o medo e mesmo o pavor das fêmeas, tigre de raça em sua vaidade felina e aguda rapidez de raciocínio. Tão rápido quanto moderado, um tigre só pula sobre sua presa para matar, ou não pula. O pulo exato, calculado, fatal e certeiro pode vir tanto de uma adaga quanto de um olhar gélido, tanto de um revólver quanto de uma atitude de desprezo, tanto de um uppon quanto de um sorriso irônico. Pior, quando vem em doses mínimas, como o veneno calculado, destilado diariamente em gotas de frieza, condenando à morte lenta quem o ingere, à suprema humilhação social, pessoal e física, à danação da vergonha eterna.
A pecadora, no caso minha avó, que também sentiu volúpia, passou a sentir ódio de si mesma e a renovar seu repertório de mágoas a cada dia, cada hora, cada minuto. Em raros momentos, a governanta lhe chegava com um recado decorado, repetido e vazio, o doutor mandou avisar que viajou neste fim de semana com as crianças, o doutor mandou avisar que vai para Londres amanhã de manhã, o doutor mandou dizer que vai ficar 3 semanas fora, o doutor vai trazer visitas para o jantar amanhã e pede que se comporte como uma dama, o doutor... que vá para o meio do inferno pensava a pobre avó, mas calava, que calada também vivia desde a traição descoberta.
Sem vacilar nunca, sem o mais leve sintoma de recaída, com a frieza e a lisura do aço e a determinação de um chacal, ele foi envelhecendo pela vida afora, produzindo fortunas de dia e perdendo-as (dizem que de propósito, para não deixar a esposa rica, caso morresse) à noite em clubes de bridge e de poker da mais alta casta do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Londres.
Divertia-se em perder milhões como quem sorri, de leve, lembrando-se que a vingança é um prato que se come frio.
Uma, duas, três casas perdidas numa noite de mais impetuosidade nas fichas, dez, vinte, trinta casas construídas no mês seguinte, outras tantas para transformar em fichas sobre o pano verde e diante de full hands, flashes, royal street flashes, dois pares, blefes e repiques. Com a cegueira permanente e definitiva de um marido magoado, vinte anos de silêncio na própria casa, os filhos casados e catapultados do inferno silencioso, e ele ali, entre um rei de ouros e um valete de espadas, vendo e revendo a cada minuto a cena que turvou seus olhos para sempre. Ele a revia a cada dia, cada hora, cada minuto, cada segundo. Uma mágoa cortante como o estilete do demônio, um peso de mil quilos sobre a própria cabeça, atado à vida por um tênue fio de teia de aranha, que o senhor apenas agradeceria aos céus que se arrebentasse. Queria esquecer, seus mil, mais dois mil, pago mostra tenho uma seguida máxima, a única distração que ainda mexia com sua adrenalina, no olvido do fato fatal, tanto ele quanto a mulher haviam morrido naquele dia, estavam mortos, enterrados, andando como fantasmas, zumbis nas noites escuras, reféns de sua própria loucura, maldita seja, maldito seja para sempre, como o ódio pode durar tanto tempo o que é tanto tempo para você, duas décadas são uma gota no oceano da história da humanidade, mais um conhaque e pode dar as cartas.
Ele, que mantinha a imagem dos dois amantes congelada na retina, como um quadro que se repetia e repetia, como um filme que se reprojetava insistentemente, uma cena revista e revisitada mil vezes, o coração murchando de paixão por aquela que não era outra senão sua esposa, a vida toda, aquela adoração reprimida, guardada em porões escuros, a tristeza semeada, desabrochada e tornada árvore entre os dois, o amor esmagado como cristal sob um coturno, porém sempre revivido e renascido só pela lembrança de seus inesquecíveis perfumes femininos, o gosto de fel de novo na boca, bile efervescente no ânimo, morreu de câncer no fígado.
Ela, que também nunca conseguiu esquecer aquela tarde, viveu bordando toalhas e ouvindo rádio o resto de seus anos que foram muitos, 20 mais que ele. Obteve (sabe-se lá se os deuses perdoam) direito pleno a duas décadas de paz, depois que ele se foi, porque o bendito silêncio de um morto machuca menos do que o maldito silêncio de um vivo, e ele que vá se danar no inferno e que as chamas o queimem lenta e eternamente, camada por camada da pele, como ele me queimou em vida. E que estas queimaduras causem uma dor insuportável, horripilante e cruel. Foi levada àquele túmulo solitário e distante pelo filho e pela filha, que seguiram as ordens dele deixadas em testamento, e que também nunca aprenderam a conjugar o verbo perdoar.
* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano). Atualmente dedica-se apenas à Literatura.
*Por Laís de Castro
Conspurcada a pureza dos lençóis de linho francês, hoje estão na moda os de algodão egípcio, mas naquele tempo só da Europa chegavam, de vapor, todas as maravilhas do mundo. O amante, quem seria o amante... Da boca de uns se ouvia que o velho e permanente suspeito, o motorista, sempre belo e mal posto profissionalmente, mas portando, além da Carteira Profissional de Habilitação, verdes de traiçoeiros olhos de serpente de água e, como uma delas, sabedor de esgueirar-se silenciosamente pela mansão. Da boca de outros, um amigo meio distante do casal, marido da amiga da amiga, estranhamente presente em todos os lugares onde eles estavam, o corpo ereto, magro como uma vara de marmelo, tomador exemplar e moderado de conhaque, o terno sempre negro como os olhos. O rosto, imaculadamente barbeado como os lençóis que conspurcava, (seria ele?) com suas invasões permitidas, proibidas, embebidas em pecados de amor e, acima de tudo, cruéis.
Ao lado do senhor da mansão, do senhor dos bancos, senhor de estradas de ferro (naquele tempo havia muitas, particulares), senhor de virtudes, senhor de senhores, uma mulher pequenina, bela, pálida, de cabelos negros. Os olhos castanhos, sem encantos tamanhos, todavia a pele...ah! a pele era branca como seda, quase transparente como cristal lapidado em nuances róseas, transpirando sensualidade por todos os poros. Recatada socialmente porém, sob os lençóis, um vulcão em erupção. Vovó, portanto, já sentiu volúpia. E era aquela sensualidade que alucinava, todos os dias, aquele senhor dela escravo, em cada passo, cada gesto, cada desorientação, que o pobre homem, meu velho avô naquele momento jovem, vivia desorientado de paixão, de amor, de dúvida, de soberba desacatada aos pés da amada, um ser humano angustiado que parecia prever cada gota da tempestade que viria, como veio e embora todos já imaginem o que seja, vou contar com o suspense necessário a todas as histórias que se contam no mundo.
Vou começar ao contrário e dizer que a pobre avó lá está, enterrada bem longe do marido, num túmulo distante e solitário, mais ninguém se enterrou ali para que o seu castigo fosse além da vida, transcendesse seus dias de respiração, para entrar com ela na eternidade e condená-la à solidão pós-mortem que, aqui entre nós, é uma bobagem porque a velha nem está sabendo disso, certo?
A primeira palavra dessa sentença foi ditada no dia em que o poderoso senhor perdeu um trem e voltou para casa, Como em todo péssimo romance de amor, lá estava o amante, prospectando cada uma das dobras do corpo dela. Lá estavam os dois, misturando-se, esbanjando suores, gritos abafados pelos beijos, enrodilhando-se em cachoeiras de paixão, dividindo os sucos do amor, enfim, impossível descrever o que viu aquele senhor e marido, naquela tarde de sol e calor.
Escureceu-lhe a visão e, quase num tombo imediato, ele conseguiu dar meia volta e sair do quarto iluminado, sentar-se por dois minutos na sala, tomar um copo de água servido pela criada desencontrada, beijar as duas crianças e sair para respirar ar fresco. Era só o que poderia fazer naquele momento para evitar espasmos e desmaios, náuseas e vômitos, pensamentos terríveis e duplo assassinato. Para evitar sangue, embora seus olhos vissem tudo vermelho. Saiu, portanto, para tomar ar fresco, respirou fundo e fez com que o ar inspirado lhe secasse o coração, endurecesse a alma, esvaziasse o cérebro de emoções e sentimentos. Ali, naquele momento, o senhor de tudo e de todos, se tornou uma estátua de pedra.
Retirou-se da cena do crime, sem cometer nenhum crime, com uma dignidade nunca vista e foi ao clube, onde jogou gamão com os seus pares até o fim da tarde. Nenhum nervo de seu rosto deixou entrever os acontecimentos, nenhuma ruga a mais se plantou em seu semblante, nada havia acontecido, exatamente nada e nada aconteceria daqui para a frente, nada mudaria em sua vida e nem na de sua mulher e nem na de seus filhos. Apenas um detalhe seria adicionado: como ele agora era de pedra, não poderia falar. Especificamente com a senhora Marianna, com quem se casara havia uma década e meia e que lhe dera dois filhos, o menino e a menina, ponto. Ponto final é o que estava estaqueando sobre aquela união naquele dia que já era noite quando o engenheiro de quase dois metros de altura, respeitadíssimo por todos, pisou de novo na mansão violada.
Frio, como a pedra em que se tornara, chamou a governanta que estava lá desde o matrimônio e mandou avisar a mulher de que, daquele dia em diante não lhe dirigisse a palavra. E que a recíproca seria verdadeira. Seria um casal para sempre em silêncio, amém.
Que preço começaria a pagar ali minha avó, pelo escapar, pela transgressão, pelo prazer do risco, pela inconseqüência, seja lá o que tivesse acontecido... Que alto preço pagaria aquela jovem de não mais de 32 anos, pelo resto de seus dias... Pior, o resto de seus dias duraria ainda mais seis décadas já que nesta família, além de ninguém mentir (traição é traição, não é mentira) também todos têm uma mania vigorosa de ultrapassar os 90 anos com orgulho e decisão. Onde quer que esteja vais te lembrar desta condenação ao inferno psicológico que te imponho e ao qual te empurro, como uma cela sem barras, uma porta sem chaves, um quintal sem muros mas do qual não podes escapar, ele não disse, porém ela escutou bem e registrou. Esta aflição e este vazio te acompanharão a cada interminável dia, a cada refeição silenciosa e a cada noite de solidão e de frios suores ao lado deste homem de pedra que, afinal, é teu marido.
Falando assim, na língua do tu, parece que tudo se congela em tom maior, mais pomposo e mais dolorido, que o erro capital se multiplica, que a dor se torna ainda mais concreta. Lá estava a pobre ré, deitada ao lado do marido, quase dois metros de altura, belo homem, o corpo moreno abundante de pelos, o fantástico sexo que ela já experimentara, com todo o vigor de seus 36 anos. Lá estava ela ao lado dele, os braços e pernas musculosos, a barba longa e bem aparada como a de D. Pedro I, como convinha a um portentoso espécime do sexo masculino em fins do século XIX e começo do XX. Uma estátua morta. (E ainda por cima sem o amante, que desaparecera no mundo sem deixar resquícios.) O marido, educado, pai de família exemplar, com um orgulho tão marcado e marcante, tão exposto e desolador quanto sua incapacidade de perdão, não perdoei, não perdôo e nem perdoarei jamais quem conspurcou meus lençóis. Assim, ele granjeava os aplausos e o respeito dos machos, o medo e mesmo o pavor das fêmeas, tigre de raça em sua vaidade felina e aguda rapidez de raciocínio. Tão rápido quanto moderado, um tigre só pula sobre sua presa para matar, ou não pula. O pulo exato, calculado, fatal e certeiro pode vir tanto de uma adaga quanto de um olhar gélido, tanto de um revólver quanto de uma atitude de desprezo, tanto de um uppon quanto de um sorriso irônico. Pior, quando vem em doses mínimas, como o veneno calculado, destilado diariamente em gotas de frieza, condenando à morte lenta quem o ingere, à suprema humilhação social, pessoal e física, à danação da vergonha eterna.
A pecadora, no caso minha avó, que também sentiu volúpia, passou a sentir ódio de si mesma e a renovar seu repertório de mágoas a cada dia, cada hora, cada minuto. Em raros momentos, a governanta lhe chegava com um recado decorado, repetido e vazio, o doutor mandou avisar que viajou neste fim de semana com as crianças, o doutor mandou avisar que vai para Londres amanhã de manhã, o doutor mandou dizer que vai ficar 3 semanas fora, o doutor vai trazer visitas para o jantar amanhã e pede que se comporte como uma dama, o doutor... que vá para o meio do inferno pensava a pobre avó, mas calava, que calada também vivia desde a traição descoberta.
Sem vacilar nunca, sem o mais leve sintoma de recaída, com a frieza e a lisura do aço e a determinação de um chacal, ele foi envelhecendo pela vida afora, produzindo fortunas de dia e perdendo-as (dizem que de propósito, para não deixar a esposa rica, caso morresse) à noite em clubes de bridge e de poker da mais alta casta do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Londres.
Divertia-se em perder milhões como quem sorri, de leve, lembrando-se que a vingança é um prato que se come frio.
Uma, duas, três casas perdidas numa noite de mais impetuosidade nas fichas, dez, vinte, trinta casas construídas no mês seguinte, outras tantas para transformar em fichas sobre o pano verde e diante de full hands, flashes, royal street flashes, dois pares, blefes e repiques. Com a cegueira permanente e definitiva de um marido magoado, vinte anos de silêncio na própria casa, os filhos casados e catapultados do inferno silencioso, e ele ali, entre um rei de ouros e um valete de espadas, vendo e revendo a cada minuto a cena que turvou seus olhos para sempre. Ele a revia a cada dia, cada hora, cada minuto, cada segundo. Uma mágoa cortante como o estilete do demônio, um peso de mil quilos sobre a própria cabeça, atado à vida por um tênue fio de teia de aranha, que o senhor apenas agradeceria aos céus que se arrebentasse. Queria esquecer, seus mil, mais dois mil, pago mostra tenho uma seguida máxima, a única distração que ainda mexia com sua adrenalina, no olvido do fato fatal, tanto ele quanto a mulher haviam morrido naquele dia, estavam mortos, enterrados, andando como fantasmas, zumbis nas noites escuras, reféns de sua própria loucura, maldita seja, maldito seja para sempre, como o ódio pode durar tanto tempo o que é tanto tempo para você, duas décadas são uma gota no oceano da história da humanidade, mais um conhaque e pode dar as cartas.
Ele, que mantinha a imagem dos dois amantes congelada na retina, como um quadro que se repetia e repetia, como um filme que se reprojetava insistentemente, uma cena revista e revisitada mil vezes, o coração murchando de paixão por aquela que não era outra senão sua esposa, a vida toda, aquela adoração reprimida, guardada em porões escuros, a tristeza semeada, desabrochada e tornada árvore entre os dois, o amor esmagado como cristal sob um coturno, porém sempre revivido e renascido só pela lembrança de seus inesquecíveis perfumes femininos, o gosto de fel de novo na boca, bile efervescente no ânimo, morreu de câncer no fígado.
Ela, que também nunca conseguiu esquecer aquela tarde, viveu bordando toalhas e ouvindo rádio o resto de seus anos que foram muitos, 20 mais que ele. Obteve (sabe-se lá se os deuses perdoam) direito pleno a duas décadas de paz, depois que ele se foi, porque o bendito silêncio de um morto machuca menos do que o maldito silêncio de um vivo, e ele que vá se danar no inferno e que as chamas o queimem lenta e eternamente, camada por camada da pele, como ele me queimou em vida. E que estas queimaduras causem uma dor insuportável, horripilante e cruel. Foi levada àquele túmulo solitário e distante pelo filho e pela filha, que seguiram as ordens dele deixadas em testamento, e que também nunca aprenderam a conjugar o verbo perdoar.
* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano). Atualmente dedica-se apenas à Literatura.
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