

Criação de personagem
* Por Daniel Santos
Viciou-se, talvez, na ilusão. Segundo pais e avós, ele seria um notável, alguém de grande notoriedade pública, de relevo social, a quem os populares estendem passadeiras, mas o tempo foi passando, e nada.
Diplomou-se e, reconheça-se, sempre se dedicou aos estudos. De resto ... Sem pulso, as mulheres lhe escapavam desinteressadas. Quanto ao trabalho, não lhe apetecia qualquer serviço, não – ia logo avisando.
Era igual aos demais, um tipete bem comum mesmo – a família admitiu tardiamente. E ele, a princípio convencido da própria excelência, foi ao mundo e conheceu vários outros que o superavam em tudo!
Agora, adulto, sem projetos a realizar, deambula pela casa, tirando livros das estantes e colocando-os de volta, como um ator no esforço de tornar seu personagem convincente. Vive a fase do espetáculo.
Tanto se dedica à encenação que esquece de si. Negligencia asseio e aparência, dorme tarde, come qualquer coisa. Depois, as azias. Mas se conforma. Afinal, tamanho foi o fiasco, que saiu barato o prejuízo.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
* Por Daniel Santos
Viciou-se, talvez, na ilusão. Segundo pais e avós, ele seria um notável, alguém de grande notoriedade pública, de relevo social, a quem os populares estendem passadeiras, mas o tempo foi passando, e nada.
Diplomou-se e, reconheça-se, sempre se dedicou aos estudos. De resto ... Sem pulso, as mulheres lhe escapavam desinteressadas. Quanto ao trabalho, não lhe apetecia qualquer serviço, não – ia logo avisando.
Era igual aos demais, um tipete bem comum mesmo – a família admitiu tardiamente. E ele, a princípio convencido da própria excelência, foi ao mundo e conheceu vários outros que o superavam em tudo!
Agora, adulto, sem projetos a realizar, deambula pela casa, tirando livros das estantes e colocando-os de volta, como um ator no esforço de tornar seu personagem convincente. Vive a fase do espetáculo.
Tanto se dedica à encenação que esquece de si. Negligencia asseio e aparência, dorme tarde, come qualquer coisa. Depois, as azias. Mas se conforma. Afinal, tamanho foi o fiasco, que saiu barato o prejuízo.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
Apostar todas as fichas num único número é um risco e mais ainda, quando a aposta é alta. A espectativa nesse personagem foi grande pelo fato de ter um olho no meio de cegos. Depois, quando vieram os que enxergam, ele apagou-se. Adorei o verbo "deambular". Na medicina, quando se descreve o estado fícico de alguém que está bem, internado num hospital para exames, escreve-se: "Deambulando". Gostei também do "vive a fase do espetáculo", e do " negligencia o asseio". Bem escolhidas palavras.
ResponderExcluirGrato, Mara. Sua crítica é substancial, pq vc atenta a todo detalhe e, como eu, aprecia a elegância da escrita.
ResponderExcluirDa superestima à demência foi um passo. Em cinco breves parágrafos Daniel traça uma vida, que é um pouco a de nós todos - se tivermos a humildade e a lucidez de admitir. Continue, Daniel, com sua pena privilegiada, a nos mostrar o precipício em que nos metemos assim que postos no mundo... Abraços e parabéns.
ResponderExcluirDar o máximo de si e , ainda assim, encontrar às centenas quem nos supere em tudo é muita sacanagem da vida, né não, caro Marcelo?
ResponderExcluirDaniel, com concisão você definiu um personagem bem comum, em um mundo tão competitivo. É triste ser bom, mas não o bastante para o padrão imposto. Beleza! Abraços e parabéns!
ResponderExcluir