quinta-feira, 16 de abril de 2009




A alface é do gênero feminino


* Por Mara Narciso


O casal mora na zona rural no norte de Minas, perto de Montes Claros, e apenas um filho está em casa. Outros três já foram cuidar das suas vidas. Ela tem 52 e o marido 54 anos, e mais de 30 anos de casados. A situação financeira é estável, e podem levar uma vida sem sustos.

A fazendinha tem confortos da cidade, e a horta ao lado é uma espécie de jardim, que faz brotar folhas de vários tons de verde e roxo. Todos os dias ela vai para lá cuidar dos legumes e das verduras. Então a menina órfã chega e fica do outro lado da cerca olhando. O pai dela morreu há poucos meses e a mãe, grávida e viúva, está sem renda.

Sem pensar muito, a mulher traz a menina para morar com eles. Tem catorze anos, é alta e magra, com um comprimento sem largura, num corpo desajeitado feito um menino. Não é feia, mas longe está de ter alguma formosura. Chega e vai ficando. Ajuda na limpeza, na varrição do terreiro, na lavação da roupa e a cuidar da horta. Na hora do almoço, todos os dias, vai buscar a alface, da verde e da roxa, pois lá tem dessa qualidade também.

O filho do casal acidenta-se de moto e fica acamado por mais de um mês. A menina toma conta dele, ajudando em tudo que é preciso. Busca água, ajuda-o a usar as muletas, faz café, traz a comida e só não ajuda a dar o banho nele, porém demonstra muita vontade de fazer isso. De tal modo o fato se evidencia que a mãe da menina precisa vir buscá-la. O filho a rejeitou claramente e sob protestos da mesma, a menina é devolvida e fica novamente no meio da pobreza dolorida.

Há gente que pensa em fazer caridade tomando adolescentes para morar com eles e não acham que aquilo não é só para passar uma chuva, e sim que poderá ser por um tempo eterno. Então começam os incômodos que nem foram imaginados. A menininha começa a comer e a engordar e assim deixa de ser um “varapau” para se tornar arredondada, atraente e por vezes perigosa.

A mulher decidiu buscar a menina novamente, por dó e para que ela pudesse ajudar nos serviços da casa. O filho já tinha ido embora e a menina foi instalada no quarto ao lado do quarto do casal. Trouxe as suas poucas coisas e, já mais a vontade na casa, ligava o rádio e limpava a sala cantando alto, numa alegria típica de gente jovem. Vai para a cozinha e corta as verduras e legumes, não descuidando de buscar a alface. Das duas cores, da roxa e da verde, que é para dar à salada bastante “sustança” e beleza.

A menina, já com 16 anos, anda toda espaçosa pela casa, e, tagarela, tem a liberdade de falar tudo o que vem à boca. As pernas bem torneadas e os seios redondos, em nada lembram a menina desnutrida de tempos antes. Logo cedo pega a vassoura, e abrindo as janelas, põe-se a varrer, sempre cantando ao som do rádio.

Na hora de cozinhar, a conversa vai longe e a intimidade vai aumentando, passo a passo, a ponto de, sem querer, ou parecendo não querer se meter, a menina comenta sobre os barulhos noturnos na cama do quarto ao lado. A mulher dá trela, e nem pensa em cortar o tema. Até insufla o assunto, fazendo comentários de que são casados, que estava muito bom, e que não é da conta dela.

A mulher começa a notar que o marido fica mais tempo em casa, que gosta de conversar com a menina, que assistem juntos a televisão, que olham um para o outro de um jeito diferente, curioso e interessado, que há uma insinuação, depois uma atração que vai aumentando, uma situação que se esquenta, está quase no ponto da fervura, e um dia culmina dos dois serem flagrados de mãos dadas. Mas o que é que tem isso? A mulher apenas comenta e nada mais. O homem acha graça da desconfiança sem cabimento. Onde já se viu? Ela é apenas uma menina. E o assunto é encerrado. A dona da casa observa que a movimentação continua, mas não fala mais nada, não dá por fé, ou exatamente o contrário, dá por fé sim, e até gosta, vá se entender o por quê, e mantém tudo como está.

A mulher começa a surgir na sala de repente, a reparar mais e mais coisas, detalhes, ações, atos claros, sem tentativas de ocultamentos. O peso da situação torna o ar irrespirável. A sensação de sedução não mais se insinua, pois os olhares, os roçar de corpos no corredor, os sorrisos e as risadas dão o tom de muitos graus a mais. A temperatura aumenta tanto que a ebulição é iminente. Todos os dias o jogo se repete. A próxima cena é fácil de imaginar. A mulher, surpreendentemente, não quer devolver a menina, mesmo sentindo que alguma coisa está para mudar, ou para unir, ou para explodir. A disputa declarada está acontecendo palmo a palmo, com a música, o canto, as alfaces, a sedução do homem, da mulher, do casal.

O final pode se dar de algumas maneiras, usando-se muitas cores, todas as texturas, como a maciez de uma folha de alface, do gênero feminino, da verde e da roxa. Podem apostar.

* Médica endocrinologista há 29 anos, acadêmica do 6° Período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a hiperatividade”

5 comentários:

  1. Uhm ... Todo mundo querendo todo mundo? Quase uma orgia. Ainda e apenas sugerida, mas já consentida, se bem que ... Não sei, alface com alface me parece pouco. Que tal acrescentar um pepino a essa frugal refeição? Afinal, maior a diversidade, maior o desfrute. Mas, mesmo que não se coma nada, o delicioso aperitivo desta crônica já apetece. Parabéns, gulosa Mara!

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  2. conterrânea, parabéns. E o Daniel, cheio de pensamentos, hein?
    Abs,
    Clara

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  3. Daniel e Clara, o final parece óbvio, mas só parece. Algumas possibilidades apresentam-se. Agradeço a delicadeza da leitura e dos comentários.

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  4. Uma crônica quase-conto, de abrir o apetite e despertar a admiração pela escrita da Mara. Parabéns!

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  5. Marcelo, a sua generosidade é um grande estímulo. Muito obrigada!

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