Os olhos do céu
* Por
Isabel Furini
Era o vigésimo ano do
Governo Correto. O Imperador de Jade Amarelo se regozijava em seu trono de
ouro. Em um dia como tantos, das areias do deserto de Gobi, chegou um viajante
com as vestes gastas, deteve-se ante o muro dos espíritos e contemplou os
dezesseis dragões imperiais. Depois avançou entre as impecáveis colunas lisas e
poligonais e solicitou que o levassem até a presença do Magnífico Imperador.
O ilustre Filho do Céu
permitiu ao viajante se deleitar com sua presença, porque era orgulhoso e
estava satisfeito com sua fama de misericordioso. O estranho ancião foi
encaminhado para a ampla sala. Realizou as respeitosas reverências indicadas no
ritual chinês, percorreu com o olhar os dezoito trípodes e por último observou
o Dono das Cinco Regiões dizendo:
– Viajei pelo Reino do
Norte, pelo Reino do Leste, pelo Reino do Sul, pelo Reino do Oeste e pelo Reino
Médio. Todos te pertencem, oh, Grande Imperador. Mas após essa longa viagem,
encaminhei-me ao zênite e por direito próprio converti-me em rei de mim mesmo.
Então, aprendi a observar a flor que se abre ao sol e o voo dos pássaros.
Aprendi a não desejar, a não planejar, a não me projetar ao exterior, a
permanecer em mim mesmo e me converti no Imperador do Infinito.
O excelentíssimo
Governador do Império Celeste mexeu-se intranquilo em seu trono sem poder
ocultar seu desgosto. Compreendeu, nesse instante, que o velho possuía um
império mais vasto que o seu. Sua mente se movimentou aceleradamente, como as
lavas de um vulcão, como uma violenta tormenta de areia.
O Filho do Céu, o
Imperador dos Cinco Elementos, pensou na sua fama. “O que será de mim quando os
homens conhecerem o poder deste velho... Ainda que não seja o dono de um
Império Infinito, sua atitude é comprometedora, e se suas ideias se espalharem,
não mais me temerão”, pensou. O que fazer? Por fim, a mão fina e aristocrática
fez um leve sinal. A Guarda Imperial se mobilizou e o ancião foi feito
prisioneiro e executado naquele mesmo dia. Enquanto os soldados o arrastavam,
deu um último olhar de compaixão ao poderoso Governador e aprofundou-se no seu
silêncio interior.
Morreu sem sequer dar
um grito, e somente uma mancha de sangue foi a testemunha de uma vida que se
afastava.
À noite, depois de
passear pelo jardim e contemplar a lua crescente refletida no lago, o Senhor do
Império Médio se dedicou ao descanso. De repente, observou uma torrente de
sangue que se deslizava por baixo da porta. O ilustríssimo Governador da China
levantou-se rapidamente, como um raio tremendo em seu coração. Antes que
pudesse gritar, da mancha de sangue elevou-se uma névoa que formou uma
estrutura diferenciada e na qual o Imperador pode reconhecer... o velho
viajante.
O velho sorriu com
tristeza e disse:
– Honorável Senhor,
não foste justo.
– Não, venerável
ancião, eu não fui justo – respondeu com humildade. Seus joelhos tremiam, as
mãos suavam e um nó parecia aninhar na sua garganta – mas quero que saibas que
até então sempre fui justo.
– Ninguém te desafiou?
– Jamais – respondeu o
Imperador com voz firme, recuperando-se do choque que lhe produzira a presença
inesperada do velho.
– Meu governo se chama
o Governo Correto. Admito que fui injusto por ter ordenado tua morte, mas
amanhã irei ao Templo Ancestral e pedirei a meus antepassados a purificação por
esse ato de impiedade.
– Ilustríssimo
Imperador, cada um deve assumir suas próprias faltas e purificar-se a si
próprio. Além do mais, senhor, nunca foste realmente justo. Todas tuas ações
estão contaminadas.
– O que queres dizer?
– As tuas ações
somente são boas em aparência.
– O que queres dizer,
ancião?
– Tuas boas ações
somente são boas em aparência.
– Como é possível? –
perguntou atordoado.
– Oh, Filho do Céu!
Tua intenção sempre foi egoísta. Com tuas ações procuras obter a fama do
governante justo, mas nunca tiveste como objetivo o benefício de teu povo. Só
estavas interessado em tua própria pessoa. Tu és superficial, egocêntrico e
orgulhoso. Não és realmente bom. Com teus atos de aparente bondade buscavas
beneficiar só a ti. Por isso ordenaste a minha morte. Teu coração não pode
suportar a existência de alguém que seja livre, de alguém mais poderoso do que
tu.
– Não compreendo,
venerável ancião – disse mexendo a cabeça, com o olhar confuso – não consigo
entender nem tuas palavras, nem tua presença.
– Talvez não queiras
compreender, nobre Senhor. Eu era o encarregado de te revelar os mistérios do
céu e de te dar o néctar da instrução. Não permitiste que eu cumprisse com meu
dever... Agora não poderás cumprir corretamente o teu dever.
Uma nova luz
espalhou-se pelo aposento real.
– Agora compreendo meu
erro – confessou o Imperador – como poderei corrigir minha falta?
– Não será fácil,
Senhor do Império Médio; não será fácil, Governador das Cinco Cores; não será
fácil, Amo dos Cinco Animais Sagrados.
– Que devo fazer,
Venerável Mestre? – perguntou num murmúrio. Ao pronunciar essas palavras, a voz
do Imperador Celeste tremeu. Seus olhos negros se encheram de tristeza.
– Deves esquecer a tua
fama, a tua condição, a tua glória. Deves ser tu mesmo. Cumprir teu dever, que
é servir ao povo.
Ao dizer isso, a
imagem do viajante começou a desvanecer-se, e o Imperador esqueceu sua glória,
sua condição de aristocrata e gritou desesperado:
– Senhor, Mestre,
preciso te ver.
– Aprenda a me ver em
cada coisa. Eu estou em Tudo. Olhe minha forma verdadeira.
O Imperador das Cinco
Regiões permaneceu atônito, contemplando a imagem do ser que havia reverenciado
desde sua juventude. Diante dele estava Yu-Huang-Chang-Ti, o Supremo Imperador
Augusto de Jade, o Senhor do Céu.
O sol avançava entre
as nuvens quando o Imperador de Jade Amarelo acordou. Fez reunir na sala
dourada todos os sábios conselheiros de seu reino e, ao narrar a causa de sua
aflição, o mais velho lhe disse:
– Filho do Céu, vives
dramaticamente centralizado na tua própria pessoa. Nosso venerado
Yu-Huang-Chang-Ti, o Senhor do Céu, quer que te esqueças de ti mesmo e então
ganharás o Império da Eternidade.
O Imperador de Jade
Amarelo sorriu feliz e abriu suas portas interiores ao altruísmo. Então iniciou
o Ano Primeiro do Governo Perfeito.
* Isabel Furini é escritora e poeta
premiada, autora de “Eu quero ser escritor – a crônica”, do Instituto Memória,
Curitiba.
Ótima alegoria, propicia para nosso tempo.
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