Espécie de eternidade
“O tempo é indivisível. Dize, qual o
sentido do calendário?”. É com este verso, e com esta indagação, que o poeta
Mário Quintana abre o seu memorável “Pequeno poema didático”. Se há um período
oportuno para esse tipo de reflexão – entendo que qualquer um o seja – é este,
quando mais um ano está prestes a se encerrar e outro, novinho em folha, está
quase às portas a nos desafiar.
Reitero a pergunta de Quintana: “Qual o
sentido do calendário?”. Na vida que costumamos denominar de “prática”, do
comércio, indústria e das relações comezinhas do dia a dia, até que tem lá sua
utilidade. Serve, por exemplo, para determinar prazos: de produção, de entrega,
de pagamento, de recebimento etc. Só isso, ou quase isso.
Acho, todavia, tremenda bobagem julgar
a competência e produtividade de uma pessoa pelo número de anos que viveu.
Estivesse ao meu alcance, eu aboliria essa prática de se contabilizar a idade.
Não vejo a menor utilidade nisso e esse costume apenas alimenta o preconceito
de quem viveu menos contra quem viveu mais.
O que importa, queiram ou não, não são
os anos vividos, mas a qualidade dessa vivência. Ademais, quem é jovem hoje,
amanhã estará em idênticas condições daqueles que hoje tentam ridicularizar.
Essa história de considerar uma pessoa, com mais de 65 anos, como da “Terceira
Idade”, é de uma estupidez sem tamanho.
Competência, sabedoria e criatividade
não é questão cronológica, e nem de raça, cor ou sexo. Ou a pessoa tem, ou não
tem. Ademais, ninguém sabe, tenha quantos anos tiver –, quer sejam dois, quer
sejam cem – quanto tempo ainda lhe resta neste mundo. Isto, supondo que exista
um outro, do que ninguém tem a mínima certeza. Especula-se muito a respeito,
mas certo, certo mesmo, ninguém está. Se disser que está, mente!
A esse propósito, li, por estes dias, este bombástico (e
incômodo) trecho do “Sermão da Quinta Dominga do Advento”, que o Padre Antônio
Vieira proferiu em 1650, na Capela Real, em Lisboa sobre o qual já comentei em
outros textos: “Quantos anoiteceram e não amanheceram! Quantos se deitaram à
noite, e não se levantaram pela manhã! Quantos postos à mesa os afogou um
bocado! Quantos indo por uma rua os sepultou uma ruína! A quantos levou uma
bala não esperada! Quantos endoideceram de repente! A quantos veio a febre
junta com o delírio! A quantos um espasmo, a quantos uma apoplexia, a quantos
infinitos acidentes, que, ou tiram o uso da razão, ou a vida! Todos estes
cuidavam que haviam de morrer de uma morte ordinária, como vós cuidais: e quem
vos deu a vós certeza de que vos não há de suceder o mesmo?”. Terrível indagação
desse sacerdote clarividente e um dos maiores estilistas de língua portuguesa!
E ele está errado? Claro que não!
Muitos, certamente, erguerão o dedo em riste e me
apontarão, acusadoramente, dizendo que “este não é o momento desse tipo de
consideração. É um tempo de festas e de alegria e blá-blá-blá, blá-blá-blá,
blá-blá-blá”. Pelo contrário, é justamente esta a melhor ocasião para
refletirmos a respeito, para que nunca esqueçamos, do alto da nossa arrogância,
prepotência e presunção, que somos humanos, efêmeros, mortais e perecíveis. E
que a mera contagem do tempo não nos assegura nenhuma vantagem (ou desvantagem)
em relação a ninguém. É inútil naquilo que importa.
Mário Quintana, no poema acima citado,
afirma:
“A vida é indivisível. Mesmo
a que se julga mais dispersa”.
E conclui:
“Todas as horas são horas extremas...
E todos os encontros são adeuses”.
Daí a necessidade de valorização do
tempo. Ele não pode e não deve ser desperdiçado com inutilidades, banalidades e
mesquinharias, sob pena de nos tornarmos pesos mortos para nós mesmos e para o
mundo. Trata-se do nosso mais precioso capital, que devemos aplicar com
sabedoria e bom-senso. Não admite desperdícios.
O mesmo Quintana, em crônica publicada
no jornal “Correio do Povo”, de Porto Alegre, observa: “Idades só há duas: ou
se está vivo ou morto. Neste último caso a idade é demais, pois foi nos
prometida a Eternidade”. A esse último propósito, peço licença ao leitor para
citar esta observação de R. Niklaus, reproduzida no livro “Silêncio e Ruído – A
Sátira em Denis Diderot ”,
do filósofo Roberto Romano: “O presente, o passado e o futuro nada mais são do
que a soma do mundo que se torna um com a eternidade. Mesmo para nós, há uma
espécie de eternidade”. Indago: “será que há, de fato?”
Haverá, mas apenas se soubermos o que
fazer, não somente com os 365 dias de 2017 que teremos (e espero que tenhamos
mesmo) pela frente, mas com todo o tempo que nos restar. Haverá se encararmos
esta fascinante aventura, que é a vida, com seriedade e estivermos cônscios do
nosso papel, porquanto, poderemos tanto marcar nosso nome para sempre na
memória das gerações, quanto ser esquecidos míseros dias após encerrarmos de
vez nossa jornada pelo mundo. A escolha é somente nossa! Felizmente...
Boa
leitura!
O
Editor.
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