Os amores de Chopin
* Por
Aloísio de Castro
Não ficaram em segredo
os amores de Chopin. Quando a celebridade sagra um homem, especialmente um
artista, é força se publiquem as venturas dos seus amores. Mais do que com
qualquer outro isso teria de suceder com Chopin. Porque, como tão bem o notou
Saint-Saëns, "na música de Chopin há sempre uma mulher". Tudo, de
fato, em sua obra respira amor e amor. Ele sempre viveu sob o domínio da paixão
amorosa, às vezes votado ao mesmo tempo a mais de um coração, mas ainda assim
sempre sincero, segundo os que o conheceram. Pode ser? É difícil, ensinou
Platão, adivinhar o coração humano. Dir-se-ia que nas mulheres amava a Mulher,
o culto era uno, na multiplicidade das figuras adoradas. Talvez houvesse amado
a quantas o jurasse, talvez a nenhuma. Seu maior amor? Quem o soube jamais? O
que durou mais tempo? O primeiro? O último? O que nunca a ninguém disse? Quando
em 1838 se uniu a George Sand, havia apenas um ano vira ele desfeitos seus
projetos de casamento com Maria Wodzinska, cuja família alegava em contrário o
mau estado de saúde do músico, pretexto que acaso encobria o motivo real, um
preconceito de casta.
Tinha então vinte anos
Maria Wodzinska. Era de alto nascimento, possuía nome dos mais preclaros em
nobreza, belos olhos negros, negros os cabelos. Quem quiser que a veja: seu
retrato, Chopin o confessou, está no segundo Estudo em fá menor.
Ah! Como resistir à
bela George Sand? As mulheres dirão que ele esqueceu depressa a sua Wodzinska.
"Chagrin d’amour..." ne dure qu’un instant. Esquecer? Também Aurora
Dudevant olvidara a Jules Sandeau, a Prosper Merimée e ao doce Musset, para só
citar os três. Maria Wodzinska apagou por sua vez a lembrança do amado, casando
em 1841. Mas ao menos conservou a predileção pelo nome e a Frederico Chopin
preferiu certo Frederico Shorbeck, que era conde e dinheiroso. Depois anulou o
matrimônio para tomar novas núpcias. Do seu amor por Chopin ninguém sabe o que
restou, mas da dor da separação ficou a Valsa em fá menor (op. 69, n. 1).
Estavam em Dresde os
dois, em 1835, iam partir, cada um seu caminho, ela para a Polônia, ele de
tornada a Paris. Hora de recolhimento, em que as esperanças de se reverem mais
tarde se toldavam no prenúncio das coisas acabadas e perdidas. De um ramo de
rosas de setembro sobre o piano, ei-la que escolhe a mais formosa, oferecendo-a
a Chopin. Vozes se levantam do teclado, onde ele improvisava uma valsa. Lá
fora, sôfregos nitriam os árdegos cavalos. Bate a hora no relógio. Em pouco
roda ligeira a carruagem, já se perderam no ar os últimos ecos da despedida. E
foi Maria Wodzinska quem chamou "Valsa do adeus" àquelas frases que
um dia vibraram no piano, onde as rosas do outono eram as rosas da saudade.
Esse triste amor de
alguns anos, para sempre perdido, não era o primeiro que dessangrava a Chopin.
O primeiro foi Constança Gladkowskaia, aluna de canto no Conservatório de
Varsóvia, a qual lhe inspirava na adolescência fanático amor, como pode ser
nessa idade. Era formosa, de olhos cérulos. Ao deixar Varsóvia em 1830,
recomendava Chopin a um amigo lhe dissesse que, "morto, aos pés dela se
espalhariam suas cinzas..." E não bastava: "Isso ainda é pouco,
diz-lhe muito mais..." Pobre Chopin. A menina desposou-se daí a dois anos.
Pobre Constança, cujo destino enoitou depois para sempre na cegueira os seus
lindos olhos azuis. Alegrias do primeiro amor, puras e divinas alegrias,
deram-nos o Adagio do Segundo concerto e a Valsa, op. 70, n 3.
Que arrastou Chopin às
exaltações da George Sand? A atração dos contrários. Ele tinha a beleza grácil,
ela a robusta beleza. De si mesma ela dizia: "Il n’y a en moi rien de fort
que le besoin d’aimer." Tinha que vencer. Havia amado muito, queria amar
muito mais. Andava então George Sand nos seus trinta e quatro anos e no
esplendor da beleza física, uma beleza de cromo, com uns toques de melancolia
romântica. Não se sabe o que levou Henrique Heine a descobrir-lhe nas feições o
traço grego. "Je ne fus ni laide, ni belle dans ma jeunesse", deixou
ela escrito na História de sua vida. Faceirice. Não se achara bela porque tinha
a certeza de que o fora. Mas George Sand cometeu a imperdoável imprudência, a
que as mulheres devem fugir, de fotografar-se depois dos quarenta anos. Haverá
quem diga que no morrer moça está a felicidade da mulher, então assim formosa
eternamente. Com George Sand, se de um lado a vemos no esplêndido retrato em
que se admiram seus olhos de sonho, de outro nos aparece essa outra imagem, tão
conhecida, uma George Sand pesadona, bochechuda e empapuçada.
Moça, era despreocupada
de enfeitar-se, linda por si mesma. Usava curtos os cabelos castanhos, fumava
como homem e tinha idéias socialistas. Evidentemente uma percursora.
Chopin, seis anos mais
moço do que ela, não resistiu ao incêndio daqueles olhares. E logo começou essa
fascinação de amor, de que tanto se tem escrito, pintando-se a sedutora (porque
foi ela a sedutora), como a mulher fatal, "la femme à l’œil sombre",
na frase de Remy de Gourmont, a causadora dos sofrimentos que acerbaram a vida
de Chopin no desdobrar dos nove anos que durou essa união, de que ele afinal se
desatou com amargura.
Todos acusam a George
Sand. Haja hoje ao menos uma voz que a defenda. Quem vai seguro consigo nas
coisas do coração? Mas o coração dos outros, esse havemos de o governar,
dando-lhes as leis e regendo-lhes os destinos, juízes inexoráveis do sentimento
alheio, fáceis no condenar com mão de ferro o de que muitas vezes a nós nos
desculpamos.
A alma ardente de
Chopin encontrou nos transbordamentos daquele afeto o carinho feminino que até
então lhe faltara. Artistas, a arte os conjugou, ela que única tem o poder de
fundir numa só personalidade o amante e o amado. George Sand possuía no
temperamento o segredo da comunhão misteriosa entre a idealidade e a realidade,
e numa existência tantas vezes sacudida por questões sentimentais conseguiu dar
o sereno exemplo de quarenta anos de ininterrupto trabalho literário, em que
criou algumas obras-primas. Ela soube admirar Chopin à altura dele e a
admiração foi o carinho do amor. Mas, ai de nós, a vida ensina que os amores
eternos são sempre passageiros. Acaso o fervor pelo gênio musical de Chopin
resistiu a tudo, mas o amor que florescera se desfez com o tempo em ruínas.
De que se culpa a
George Sand? De que poucos anos passados já não amava com amor o seu Chopin, se
em verdade algum dia o amou. Mas se já não havia amor, havia agora um afeto que
se desentranhava em nobre dedicação, verdadeiramente admirável quando se pensa
no estado nevrostênico de Chopin, estado engravescido com o doloroso mal em que
ele se arrastou, no seu lento morrer de muitos anos. E ela? Ela, como disse
Pierre Mile, para que não sofresse o seu doente, por longo tempo "permaneceu
fiel à sua paixão morta, por indulgência, talvez por caridade, e sobretudo por
instinto materno".
(A expressão
sentimental na música de Chopin, 1927.)
*
Escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
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