quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Aroma, perfume, odor e os milagres do cerrado


* Por Mara Narciso

O Exército Brasileiro ligado ao Ministério da Integração Nacional distribui água potável em carros-pipa, para 42 municípios do norte de Minas em estado de seca ou estiagem prolongada há mais de quinze anos. Não estamos no Polígono das Secas, aquela Área Mineira da Sudene – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - apenas pela localização no mapa, mas pela trágica má distribuição de chuvas que acomete o norte de Minas Gerais desde os primórdios da nossa história. Agora, mais recentemente, não chove nem apenas o razoável há três anos. Até a sede de alguns municípios ficam sem água, mas em geral, são as pequenas comunidades e o casario mais isolado que ficam secos.

Desde 2001, na nossa região, as moradias mais distantes de fontes perenes de água possuem o sistema de coleta de água de chuva, na forma de cisternas. Essas cisternas de placa para coleta de água foram implantadas em 2001. Muitos criticam tais caixas ligadas a calhas nos beirais dos telhados, levando as escassas chuvas para o reservatório, mas são salvadoras, pois captam o suficiente para se utilizar uma quantidade por dia, capaz de durar até oito meses, o período médio de seca mais rigorosa na região. Quem acha o sistema ruim alega que as primeiras chuvas levam sujeira para dentro da caixa. Solução há.

Por sua vez, quem faz a programação de distribuição de água via pipa, sabe do alto nível de stress que essa tarefa envolve. O planejamento logístico exige cálculo matemático de densidade demográfica, distância, estado das estradas, negociação com pipeiros, habilidade política com quem espera pela água e outros custos emocionais. O Governo paga a conta.

Lá pelo mês de agosto deste ano, notamos que as mangueiras estavam enlouquecidas, com suas folhas perenes, porém com uma anomalia, a falta de simetria entre seus frutos, que se mostravam em todas as fases de desenvolvimento, de flores a frutos grandes. Pois de setembro para outubro, sem ter chovido nada, surgiram mangas maduras, especialmente mangas-rosa e ubá.  Olhava-se o fruto perfeito, de bom cheiro e tamanho, com casca levemente lisa, sem uma manchinha, e de gosto precioso, típico e com seu adocicado peculiar. Inacreditável milagre. De onde veio a água para formar a manga?
  
Há meses o Rio São Francisco estava seco na região de Pirapora, com mato de mais de metro e meio debaixo da ponte ferroviária, de ponta a ponta. Quando se dizia que o rio estava seco, muitos imaginavam que a água estava baixa, mas não que havia um campo de futebol dentro do leito. Pois com toda a sequidão, as mangueiras da região conseguiram achar água para crescer e amadurecer seus frutos. Mistérios de deserto. Ou outra coisa mais?

Então, se espera a chuva do broto, aquela do começo da primavera, que não vem, mas as árvores se vestem de roupa nova e de flores, seguindo um sinal invisível que é imperceptível aos humanos. Não se vê a causa, apenas o efeito. Professores já asseguraram aos seus alunos que por aqui só há duas estações, a seca e a chuva, porém, os olhos não científicos notam o verde primaveril, assim como o cheiro forte de fruto do cerrado no ar, mal se vê aproximar o fim do ano e seus outros milagres.

Os nascidos por esses ermos sabem que de novembro a janeiro é fácil identificar um odor agridoce pelo território montes-clarense.  Começa pelas mangas, especialmente a ubá, e outros cheiros muito parecidos vão chegando e se incorporando, como pequi, o mais inquietante, também coquinho azedo, panã, e o meu predileto, murici. São todos amarelos, com sabores semelhantes, embora de formatos e aparência diversificada. É quando velhos e moços ficam amarelos, não de anemia, pois quando chegam as frutas da estação a fome se vai, mas com as palmas das mãos e plantas dos pés totalmente cor de beta caroteno, a pró-vitamina A. A chuva acaba vindo, com sua maluca distribuição de cair toda numa tarde e depois ficar um mês sem dar as caras.

Antigamente, o tempo das águas tinha motivo para ter esse nome, pois chovia todos os dias de dezembro. Agora, depois que raparam o cerrado, arrancando raiz de pequizeiro com trator para fazer carvão para a indústria metalúrgica (minério de ferro mais carvão vegetal – cerrado, florestamento e reflorestamento - dando ferro-gusa que vai virar aço), não conseguimos entender o motivo de ainda sentirmos o cheiro dessas frutas por aqui. Parece o resultado de um dogma impenetrável, considerando a ignorância dos espertos que, mesmo de cara com a fiscalização, e mostrando suas propriedades peladas, lamentam as nascentes desaparecidas, os rios secos e quase nada de chuva pela propriedade. Já esses acontecimentos são compreensíveis e nada milagrosos. São produtos da burrice humana.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   

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