Meu primeiro universitário
* Por
Urda Alice Klueger
Lembro que o meu pai
comprara areia fina para fazer alguma obra lá em casa, e a areia estava
amontoada num quadrado de terreno, junto à cerca, esperando a vez de ser usada.
Impossível lugar melhor para brincar, e lá estava eu, mexendo na areia,
quando... quando... céus, algo estava acontecendo!
Naqueles idos de 1964
os homens usavam cabelos bem cuidados, com ondas fixadas à Gumex, como o meu
pai, penso que por conta de James Dean ou já de Elvis Presley – a exceção eram
os soldados, que cortavam o cabelo à escovinha, obrigatoriamente, e quando a
gente via um rapaz com os cabelos assim, já se sabia que havia ido para o
exército.
Brincava eu na areia,
naquele dia, quando alguém atípico veio andando, subindo a rua, e não era nem
um homem usando Gumex e nem um rapaz do exército: tratava-se de Francisco
Moacir, irmão do meu amigo Braz dos Santos, filho de uma senhora muito querida
chamada Dona Alvina, que morava mais adiante, na nossa rua. Era um moço
circunspecto e sério, que passava todos os dias por ali andando
compenetradamente, e imagino hoje que mundos não teria dentro da sua cabeça
para caminhar assim com toda aquela seriedade.
Não seria estranho ele
passar ali, já que o fazia diariamente, caso ele não tivesse sofrido uma
abrupta mudança: apesar de já não ter idade para ser um rapaz do exército,
tivera os cabelos cortados rente à cabeça, e estava usando um bonezinho que na
minha lembrança era azul, onde estavam escritas as palavras “Ciências
Econômicas”. Deixei a areia escorrer dentre os dedos enquanto o observava
passar com a mesma circunspecção de sempre, olhos fitos lá adiante, alguém que
se tornara tão diferente de todo o mundo que eu acreditaria que se tratava de
um extraterrestre, se tal me fosse dito.
Imóvel sobre o monte de
areia, fiquei tentando entender o que acontecera, o porquê daquela perda de
cabelos, o que era aquele bonezinho azul tão diferente, o que seria “Ciências
Econômicas”. Conhecia a palavra “economia”, que era uma coisa que a minha mãe
praticava diuturnamente, mas essa expressão nova me parecia muito misteriosa e
sem nenhuma ligação com a vida real.
Decerto, como eu, muita
gente da nossa rua Antônio Zendron e do nosso bairro Garcia e do nosso mundo
tacanho em geral ficou impressionada e curiosa com a novidade que se nos
apresentava o circunspecto Francisco Moacir – o que era aquilo? Em breves dias
as notícias circularam e chegou a informação: nosso vizinho tinha “passado no
vestibular”, ”entrado na faculdade”, pois agora Blumenau tinha uma primeira
faculdade, coisa que não sabíamos exatamente o que era. Faculdade era uma coisa
de estudar, ficou-se sabendo, mas nada era muito claro. Pouco sabíamos sobre
estudos – na verdade nós, gente comum, estudávamos por quatro anos – aos 11
anos estávamos saindo da escola, e esperávamos em casa completar os 14 para ir para
a fábrica, as meninas ajudando a mãe e bordando o enxoval; os meninos, matando
passarinho a bodoque ou funda e incomodando os vizinhos. Esta era a regra – não
sei como fui exceção; talvez minha âncora para a grande e diversificada viagem
da vida tenha sido os muitos livros que lia continuamente, na inesgotável fonte
que era a Biblioteca Pública Municipal Dr. Fritz Muller, meu sonho de consumo
desde a primeira infância.
Uns poucos
privilegiados, filhos de gente mais poderosa, normalmente donos de muitas
terras e vacas, estudavam contabilidade no Colégio Santo Antônio ou faziam o
curso complementar, em dois anos, o que os transformava em professores, e que
era direcionado preferencialmente para as moças. Ricos, ricos mesmo,
notadamente os donos das grandes indústrias, pois tal já tínhamos, estudavam em
lugares misteriosos como a Alemanha ou o Rio de Janeiro, mas o que estudavam
lá? Não tínhamos noção do que seria uma universidade e não nos ficava claro o
que faziam os tais herdeiros de fortuna em tais lugares distantes – apenas
tínhamos a informação de que gente rica ia para fora para estudar.
Portanto, era uma
surpresa total essa coisa de que agora havia uma faculdade em nossa cidade,
coisa tão próxima que até um rapaz da nossa rua podia frequentar – mas por que
será que tivera o cabelo raspado, e o que era um vestibular, e o que eram
ciências econômicas?
Acho que elucidei
muitas coisas a respeito através dos tantos romances que lia, onde pessoas
acabavam indo para faculdades – para muita gente da minha rua, no entanto,
penso que a névoa do mistério perdurou até o fim das suas vidas, pois sei de
muitos que acabaram morrendo, um dia, sem acreditar que em 1969 o homem
estivera na lua.
Andei me informando,
agora, o que aconteceu com o filho de Dona Alvina e irmão do Braz, o Francisco
Moacir dos Santos, aquele meu primeiro universitário, que, faz cinquenta anos,
entrou na minha vida com seu bonezinho azul, trazendo atrás de si todo um rol
de novidades que iria mudar tantas coisas para tantos de nós: formou-se,
constituiu família, está vivo, hoje morando no Rio de Janeiro.
Que bom saber dele,
daquele moço mais sabido e mais corajoso do que todos nós outros, tão sabido
que foi da primeira turma da primeira faculdade da FURB, que soube segurar a
vida com as mãos e dar aquele grande passo que o tirou do nosso mundo pequeno e
escuro. Faz cinquenta anos neste ano que um primeiro universitário apareceu na
minha vida, e parece-me que ainda estou sobre aquele monte de areia, pasma com
a sua aparição andando circunspectamente rua acima! Bem que gostaria, hoje, de
lhe dar um abraço!
Lá de algum lugar, Dona
Alvina deve estar vendo esta minha vontade!
Blumenau, 08 de Agosto
de 2014.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre
os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12
edições).
Menos de cinco anos depois desse fato, a minha mãe, com 33 anos, pacata dona de casa e mãe de três filhos, de 14, 13 (eu) e 5 anos se tornava uma universitária de Medicina. Pegaram uma mecha do cabelo dela que era negro como as asas da graúna e o descoloriram em amarelo ouro. Isso sim, foi susto, pois a partir daí, ela nunca mais largou de um livro (que já gostava muito), e passou a ficar horas dissecando cadáveres. Linda a sua história, Urda, e especialmente a maneira doce de contar. Eu aproveitei e peguei carona nas suas lembranças e fui visitar o passado das estranhezas e esquisitices.
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