O humanismo de Rubem Costa
* Por Luiz Carlos R. Borges
Um dos aspectos mais marcantes na
obra literária de Rubem Costa, seja em suas crônicas, seja nos trabalhos
ficcionais e historiográficos, é o seu humanismo. Em seus escritos, sempre há
espaço para um olhar generoso, direcionado para a criatura humana, em sua
grandeza ou fragilidade.
Lembro, aqui, três exemplos.
Em seu livro de narrativas
curtas, “3 Contos de Réis e Outras Histórias” (2003), cabe destacar, entre
tantas, aquela intitulada “Onde os Limões Florescem”. Nela, o autor relembra o
grande e doloroso impacto que lhe representou, menino ainda, a notícia do
diagnóstico de uma doença terrível, naquele tempo com incerta probabilidade de
cura, e os desassossegos e angústias seguintes ao tratamento da moléstia, o
isolamento a que teve de ser relegado, o cauteloso afastamento de seus amigos e
companheiros de escola. O protagonista seria, portanto, o próprio escritor.
Seria? Pois eis que surge na
narrativa o amigo Chiquinho, habilidoso no violão e, sobretudo, no violino.
Chega ele, para visitar o amigo, sobraçando
o estojo preto do violino, e logo se põe a executar no instrumento uma
valsa vienense. De Strauss, ele
anuncia. Ao som da música o ânimo do doente se eleva, vai embora a angústia e
ele se surpreende a sorrir. “Conto dos Bosques de Viena”? – arrisca ele, finda a execução. Não, corrige o
amigo músico: “Onde os Limões Florescem”.
Confessa o escritor: a denominação era bem a dimensão da mensagem
que caminhava dentro de mim, enquanto, pelas suas mãos ágeis, o arco se
distendia, em idas e vindas, nas cordas do violino. A música, a presença do
amigo, suas palavras de estímulo devolvem a esperança ao doente, que passados
alguns dias, se recupera, cura-se – e sobrevive a todos os amigos, a Chiquinho
inclusive: a própria vida reflorescera.
Por isto, por certo ângulo o
protagonista da estória é Chiquinho, portador da mensagem de esperança,
transmitida pela linguagem da música, e, por seu gesto, por sua arte, por sua
simplicidade e bondade, repleto de calor humano, repleto de grandeza humana.
Em suas crônicas, impossível não
realçar a magnífica “Eu e a Casa” (“Antologia da ACL”, 2010), seguramente um de
seus mais belos textos, exemplar em sua conjugação harmônica entre a sóbria e
contida emoção e a elegância estilística que constitui outra das
características mais notórias do autor.
Nela, Rubem relembra a casa onde
nasceu, em Campinas, e onde passou a sua infância, ao lado de três irmãos e
sete primos: uma população! E que nos
dias de hoje, abrigando um sebo de livros, ainda resiste, bravamente, ao
assédio das intempéries e das especulações imobiliárias.
Sobre a fria arquitetura da casa
o escritor faz projetar a força de sua memória e de sua arte, fazendo-a pulsar
com as lembranças de um tempo remoto em que entre suas paredes um menino
resistia silenciosamente às dores de uma doença atroz, e rezava, e sonhava, e
sobrevivia. Assim, transmitindo ao antigo lar a sua própria centelha de
criatura humana, o escritor não só engendra o milagre da recuperação de um
tempo ido, salva a Casa das agruras da finitude, como ainda, e sobretudo,
humaniza-a.
Daí, dizer o memorialista, mescla
de melancolia e humor digna de Machado:
Eis que ambos viramos “brechó”. Ela recolhe
e vende ideias engavetadas em livros esquecidos. Eu, no baú das lembranças,
engaveto ideias naufragadas e sonhos perdidos. Assim, zombeteiro o tempo nos
reúne. Ri quando pensamos que ele passa, quando somos nós que passamos por ele.
Sarcástico, outro dia me fez cruzar com ela, que nem sequer me reconheceu.
Indiferente, depois de tantos anos, hoje me ignora.
Este humanismo de Rubem Costa
comparece mesmo nos registros de natureza historiográfica. Em sua obra mais
recente, “Bicentenário de Campinas – A Saga que a Cidade Amou – 1739-1939”
(2013), compõe ele o registro documental do que foram as festividades em torno
do “primeiro” bicentenário de Campinas, a partir da concepção, posteriormente
abandonada, de que a fundação da cidade remontaria ao ano de 1739.
Tais festividades foram
testemunhadas pelo próprio autor, então na qualidade de repórter do jornal “Diário
do Povo”, designado para a cobertura do evento.
Nas páginas do livro, historia-se
o contexto político em que tiveram lugar as comemorações; desfilam os nomes de figuras ilustres da
época, direta ou indiretamente associadas às efemérides, tais como o ditador Getúlio
Vargas, o então interventor do Estado de São Paulo, Adhemar de Barros, o
vereador Ernesto Kuhlman; descreve-se o recinto construído para a instalação de
uma exposição-feira, com espaços destinados a um cassino, um bar com danceteria
(“Bavária”), um parque de diversões, os vários pavilhões, a avenida aberta para
o acesso a todas essas dependências...
Em meio a esses registros, de
notável interesse documental e historiográfico, eis que surpreendentemente, no
capítulo intitulado “No Palco, o Sonho”, irrompem (quase como uma intromissão,
quase como uma heresia, mas, na realidade, manifestação daquele peculiar
humanismo do autor), as personagens marginais de Sarita e Uiara.
Quem são elas? Duas prostitutas.
Que aproveitam a ocasião das festividades do bicentenário para exercitar um ofício
extraordinário, como cantoras no palco do “Bavária”. E que, finda sua
apresentação, por volta da meia-noite, retornam aos seus afazeres ordinários,
nos bordeis instalados nas proximidades do Mercadão: a negra Sarita, no “Cabaré
da Sophia”, sua companheira Uiara, na “Casa da China”.
Vai além o escritor; ingressa
ainda mais na intimidade das duas personagens e descreve os seus sonhos de
ascensão social e profissional: Sarita almeja, um dia, deixar o Cabaré
frequentado por uma clientela de parcos dinheiros e ser admitida na “Casa da
China” e em seu salão oriental decorado
ao capricho das dinastias Ming e Qim, lembrando o interior de um templo de Pekim... Uiara, por sua vez, não se
resigna a seu atual estado, e guarda também um grande e igual desejo oculto:
participar das noitadas do Cassino Atlântico. Um sonho inalcançável.
É assim, através desse gesto
amoroso, a ultrapassar os convencionais
limites do exercício de uma historiografia oficial, que Rubem Costa resgata das
sombras duas criaturas fadadas ao anonimato e ao esquecimento, para inseri-las
no rol das coisas memoráveis – vale dizer: para inscrevê-las nos palcos da
História.
* Juiz aposentado e escritor
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