Flagrantes londrinos
* Por
Marcelo Sguassábia
Flagrante Um
As perdizes grelhadas,
ao molho de damasco e nozes, estavam particularmente tenras. Her Majesty
Elizabeth passa placidamente o fio dental, removendo um resíduo de alecrim
alojado entre dois molares da arcada superior. À sua esquerda, um assessor de
terno risca-de-giz relembra a pauta a ser discutida com a delegação do governo
australiano, já a caminho de Buckingham. Em 12 minutos terá início a audiência,
e dois furgões da BBC rondam há horas pelas proximidades. Um discreto muxoxo e
um sinal de desaprovação com a cabeça deixam claro ao estilista real que os
oito modelos de chapéus sugeridos não agradaram. “More options, please”.
A rainha quer um tempo.
Tranca-se em seus aposentos, afasta um dos quadros da parede, abre o cofre e
dele retira sabe-se lá o quê.
Jamais súdito algum,
nem membro do cerimonial, quiçá o Príncipe Philip saberá do que se trata. Acaricia
o que tem em mãos e suspira fundo. Beija o misterioso objeto como se fosse
relíquia e o recoloca onde estava.
Em outra ala do
palácio, Philip espreguiça-se no divã. Antes de ferrar no sono, olha para a
garrafa de bebida na mesinha ao lado e lê no rótulo a tradicional inscrição:
“By appointment of Her Majesty the Queen”. As letras começam a dançar ao piscar
lento das pálpebras. “Grande porcaria”, ele pensa. “O que ela entende de gin?”
Flagrante Dois
Membro da Guarda Real
desde 1997, ano da morte de Lady Di, David Mansfield está impassível em sua
guarita na entrada principal de St. James Palace. Mesmo sem o glamour de outros
tempos, o palácio ainda é muito assediado por turistas. Há câmeras por todos os
lados, e qualquer movimento seu estará sendo registrado. Preferia o inverno e o
vetusto uniforme cinza que o escaldante mormaço daquele dia, ainda que o
figurino ficasse mais atraente ostentando a vistosa farda vermelha. Como
sempre, os grupos de excursões se sucedem à sua frente. Querem fotos junto à
estátua humana. “Mãe, o olho dele não mexe mesmo. Nem pisca”. “Tira uma foto
minha que depois eu tiro uma sua”. Até chifrinho atrás do capacete de pêlo de
urso ficavam fazendo. Um golpe mais forte de vento acabou por levantar a
mini-saia da mocinha à sua frente. Foi quando teve uma reação fisiológica
involuntária, que esperava não ter sido documentada pelas câmeras.
Flagrante Três
Richard Smith avistou
Dorothy Lester pela primeira vez às nove e quinze da manhã de uma cinzenta
quinta-feira. Richard é supervisor de manutenção do ponteiro de minutos do Big
Ben; Dorothy, do ponteiro de horas. Guardiões da pontualidade britânica, ambos
estavam agarrados a seus respectivos objetos de trabalho, lustrando e tirando o
pó a dezenas de metros do chão.
- É nova por aqui?,
gritou Richard.
Sorrindo encabulada ela
disse que sim, mas tão discretamente que ele nem percebeu. Os minutos foram
passando e eles foram se aproximando. “What a lovely girl”, pensou Richard,
zonzo pela vertigem da altura e pelo encantamento de Dorothy sobre ele. Às nove
e meia, se entreolharam e sorriram cúmplices. Às vinte para as dez, ponteiros
mais próximos, começaram a namorar. Cinco minutos depois, quase coladinhos,
noivaram. Ao meio-dia em ponto, Dorothy ficou grávida. Os sinos do histórico
relógio do parlamento badalaram de alegria. Quando desceram, a Abadia de
Westminster já estava cheia de amigos para assistir ao casamento.
*
Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Pensava que os ingleses fossem um pouco mais lentos e formais. Como é bom ter um escritor original e bisbilhoteiro, que invade as intimidades reais como quem sempre esteve lá, e nos conta com a maior naturalidade as humanidades nossas e dos outros todos no dia a dia. Foi bom ter estado lá.
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