sábado, 10 de maio de 2014

Um pouco mais sobre o Cambuci


* Por André Falavigna



Há muitos anos ouvi meu irmão ler para meu pai uma matéria de um jornalão paulista, não lembro se a Folha ou o Estado, que trazia um estudo atualizador sobre os bairros de São Paulo. Isso foi em 80 e pouco. Era um resumo das mudanças ocorridas na cidade nos últimos trinta anos, ou coisa que o valha. O que importa era que havia a informação de que alguns bairros clássicos estavam diminuindo, sumindo mesmo, tragados por bairros vizinhos que, por um motivo ou outro, foram se tornando mais prósperos. Um desses bairros ameaçados de morte era o Cambuci. A Aclimação o estava devorando.

Não sei como é no resto do mundo. Não sou uma pessoa muito viajada. Leio bastante e, por isso, faço uma idéia de como as coisas funcionam em outros lugares, mas é só isso que faço: uma idéia. O que sei é que esse fenômeno do encolhimento e da expansão dos bairros é um dos que mais dão conta dos aspectos baixos desta cidade. Trata-se de uma vergonha.

Alguns leitores poderão levantar uma série de questões a respeito desse assunto. Como pode um bairro diminuir e aumentar assim, sem que nenhuma formalidade seja necessária? Quem decide esse tipo de coisa? Como se define até onde vai um bairro? Quem resolveu isso e quando? Quem escolhe o nome dos bairros? Como é que alguém sabe onde começa e onde termina um bairro? De quem é a culpa pelo nome que deram à Cidade Adhemar?

Antigamente, dizia-se assim: para se saber em que bairro está determinada rua basta obedecer à delimitação da jurisdição de cada distrito policial. A rua é do bairro que estiver sob a jurisdição do distrito que a atender.  Quando você chama a polícia, chama a do 3º Distrito? Então você está em Campos Elíseos. E por aí ia. Não vai mais.

Isso se tornou impossível, porque temos muito mais bairros do que delegacias. No Cambuci, quando se quer a polícia por perto, chama-se o 6º Distrito, que se diz da Aclimação. Tenho certeza que ele está no Cambuci mesmo. Há uma delegacia perto do Hospital do Câncer que diz que está na Aclimação também, mas ali deve ser Liberdade. Também tenho certeza de que existe um critério para se entender o que é um bairro, o que é uma região administrativa e o que é o quê. Mas ninguém que conheço entende como a coisa funciona e, ao que parece, não é para entender mesmo. Procure um site oficial com a lista de bairros de São Paulo, com suas fronteiras e tudo o mais. Pode ser até que exista, mas está muito bem escondido.

O fato é que nada disso interessa. O que interessa é que cada um fala que mora onde lhe vem à veneta. Isso é muito bom, porque é uma das coisas que as pessoas ainda podem dizer a seu próprio respeito sem que alguém ache mais justo que o Estado dê uma supervisionadinha. Outro aspecto positivo é que assim a gente fica sabendo quais dos nossos vizinhos não passam de uns filhas de uma puta que comem mortadela e arrotam peru. Porque esse é o único motivo pelo qual o Cambuci diminui e a Aclimação aumenta. O caso é que há uns tipos por aí que gostam de dizer que moram na Aclimação porque acham que a Aclimação é um “bairro fino”. Isso eu não sei.

O que sei é que há um bonito parque ali, que esse parque foi o primeiro Jardim Zoológico do Brasil e que quem não conhece o bairro sempre se perde nele. Há até um caso de um fusca verde-abacate que tenta sair da Aclimação há 17 anos, sem sucesso. O troço é um labirinto. E todos os coreanos que chegam ao Brás, assim que enriquecem, vão para a Aclimação. Não sei  aonde estão indo parar os tradicionais japoneses que, uma vez ricos, saíam da Liberdade para morar lá. Provavelmente ficaram milionários e foram para o City Lapa. Com os coreanos tenho certeza que eles não estão. Quando os coreanos  ricos da Aclimação tornarem-se milionários irão para o City Lapa e serão substituídos pelos chineses que, agora, estão substituindo os coreanos do Brás que vão para a Aclimação porque ficaram ricos. A Aclimação estará então repleta de chineses ricaços. Nem me perguntem o que os japoneses bilionários vão fazer quando os coreanos chegarem ao City Lapa. A coisa é tão confusa que confunde mesmo. O duro é que quando você começa a se acostumar com um tipo de oriental, logo surge outro, totalmente diferente e que, coisa espantosa, detesta de morte o tipo anterior e, ainda, o posterior também. Tudo que se pode dizer a respeito da Aclimação se resume a uma alucinante rotatividade de olhinhos puxados, peixe cru e sopa de cachorro. No entanto, o bairro é bom, bonito, limpo e mais caro que o Cambuci. Até a cocaína de lá é melhor. Então, todo mundo acha melhor dizer que mora na Aclimação, que seu imóvel está na Aclimação e que conheceu a mulher na Aclimação.

Ora, isso é franca viadagem. O bairro está se tornando uma espécie de Moema, cheio de prédios, poucas casas e muita frescura. O grave é que, diferentemente de Moema, os negócios que são abertos na Aclimação fecham com a maior facilidade. Até o Mac Donald’s da avenida principal do bairro, que era 24 horas, desistiu e não é mais. Todo mundo sabe que o Mac Donald’s é uma porcaria, mas que vive cheio. Só a Aclimação é capaz de conter o Mac Donald’s. E não é por requintes gastronômicos que o pessoal não vai ao Mac Donald’s. É porque ninguém quer pôr a mão no bolso mesmo. Ou vocês acham que aqueles orientais todos ficam ricos como? Outra coisa: se for para gastar uma fortuna por um sanduíche, qualquer pessoa normal prefere ir ao Achapa. Os moradores da Aclimação são tão pães-duros que alguém de lá deveria ocupar algum cargo no governo federal e controlar todos os gastos da União, sob uma ditadura qualquer. Em poucos anos veríamos uma espécie de Milagre Econômico. Fizeram com o Delfin Neto e deu certo. Sim, o Gordo é da Aclimação, e a casa da mãe dele, antigamente, vivia com um outdoor pedindo votos. Isso quando se podia votar, é lógico. E tem gente que prefere mesmo dizer que é de lá. Vai entender.

O Cambuci é muito melhor. Para começo de conversa, se você é de lá pode dizer que é cambucetense. Isso sim é ser fino de verdade. E há mais: havia uma escola de samba no Cambuci, a Império do Cambuci. Acho que virou bloco. Reza a lenda que o grito de guerra da Mangueira é plágio do da Império do Cambuci. Não sei se é verdade mas, se for, o Cambuci já fez mais pelas comunidades carentes do Rio do que todas aquelas ONGs e suas escolinhas de música, capoeira e solidariedade bolivariana. Juntas.

No Cambuci, há uma porta para o Glicério. Isso implica em saídas para sardela da melhor qualidade. A coisa mais parecida com isso, na Aclimação, é a merda de cachorro que as madames insistem em não recolher e que atapetam boa parte das ruas do bairro. Sabe como é, não é culpa delas: é que ainda não inventaram um jeito de limpar aquilo com a mão fechada.

As padarias da Aclimação são verdadeiramente dispensáveis. E nem ousem falar da Fluminense. A Fluminense fica daquele lado da Muniz que é mais perto da boca do que do parque. É, portanto, Cambuci. Por isso que o pão de lá é bom. Se fosse na Aclimação, ia ser aquela coisa insossa que é o pão da Orquídea Não Sei Lá o Quê. Aquilo é pão para maricas. Não confundir com essa Orquídea com a Orquídea Não Sei das Quantas, que é na Conselheiro Furtado, Liberdade, e que é outra bosta. A Carinhosa era boa, mas de algum modo virou uma coisa repulsiva e que merece ser incendiada, com os clientes dentro. Trancados. Eu odeio a Carinhosa.

Os aluguéis da Aclimação são proibitivos, o preço dos imóveis é crime contra a economia popular. Havia dois cinemas lá: um virou um supermercado tocado por... chineses. O outro virou uma “Renascer em Cristo” tocada por gente que tem as contas bloqueadas. A única coisa interessante que restou é a “A Juriti”, que de alguma forma parece ser mais do Cambuci do que de qualquer outro lugar do mundo.

O importante é o apelo da coisa. As pessoas têm que se conformar com fato de que moram no Cambuci mesmo, e que isso é bom. Não adianta o sujeito ficar repetindo por aí que é da Aclimação e, quando você pergunta onde  é a casa dele, ele diz que é do lado do Costelão do Edão. Em vez de parecer rico, fica parecendo alguém que quer vender a casa ou, o que é pior, fazer gracinha. Mesmo porque a costela do Edão é perfeita, e o Ed Carlos ainda beija a gente quando a gente vai lá. Perguntem a seus pais quem foi Ed Carlos e depois me digam se não vale a pena.

O Cambuci ainda tem outras vantagens. Há uma província nossa, que se chama Ipiranga (ou Vila Monumento, dá na mesma), que tem até um museu bonitinho. São tantas coisas lindas que eu nem lembro mais agora. O resto fica para quando eu for falar da Mooca, aquele bairro onde todo mundo vota no Maluf e que, se fosse um país, teria o Ministério da Cultura ocupado pela Hebe Camargo.

(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas  publicações eletrônicas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário