segunda-feira, 26 de maio de 2014

Muito talento e pouco juízo


O poeta Torquato Neto é dessas figuras, digamos, “diferentes”, exóticas mesmo, no que diz respeito a comportamento. Mas com um talento imenso, indimensionável, genial, talvez inigualável. Viveu pouco, muito pouco, pouquíssimo, apenas 28 anos. Morreu, todavia, não em conseqüência de alguma doença incurável ou mesmo por causa de algum acidente, desses que ceifam, volta e meia, jovens promissores, em plena flor da idade. Optou por dar cabo da vida, cometendo suicídio, para pasmo e lamentação de todos os que o conheciam e que lhe prognosticavam um futuro brilhante, em que “o céu seria o limite”. Lembro-me quando a imprensa noticiou sua morte, embora sem enfatizar a causa, já que o tipo de ato que perpetrou é uma espécie de tabu nas redações.

Vamos por partes. Torquato Pereira de Araujo Neto nasceu em Teresina, Piauí, em 9 de novembro de 1944. Completaria, portanto, no final do corrente ano, setenta anos de idade. Completaria... mas... Além de poeta, foi jornalista, letrista de música popular, ator e o escambau. Em termos de arte e de comunicação, fez um, pouco de tudo. Foi, sobretudo, expoente da contracultura brasileira em fins dos anos 60 e início dos 70, em uma época muito dura para todos nós, por causa da ditadura militar. Destacou-se em tudo o que fez. Na poesia, por exemplo, não se limitou a compor, mas fez dessa arte estilo de vida. A esse propósito, escreveu: “Escute, meu chapa, um poeta não se faz com versos. E o risco é estar sempre a perigo, sem medo. É inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores. É destruir a linguagem e explodir com ela. Quem não se arrisca, não pode berrar”. E Torquato se arriscou. E muito...

Filho do defensor público Hélio da Rocha Nunes e da professora primária de Teresina, Maria Salomé Nunes, o genial (e genioso) adolescente mudou-se, aos 16 anos, para Salvador, onde fez amizades que durariam pelo resto de sua (curta) vida. Estudou, por exemplo, no Colégio Nossa Senhora da Vitória com Gilberto Gil, um dos seus parceiros preferenciais na MPB. Estreitou relações com Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia, com os quais também trabalhou, além de atuar como assistente de ninguém menos do que Glauber Rocha, no filme “Barravento”. Não tardou para que Salvador se tornasse muito pequena para seu talento e suas ambições. Assim, aos 18 anos de idade, em 1962, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viria a se consagrar, a se decepcionar da arte, dos amigos e de tudo e a dar cabo da vida.

Na Cidade Maravilhosa, sua intenção era a de cursar Jornalismo. Nunca chegou a se formar, mesmo tendo trabalhado em grandes jornais cariocas, como Correio da Manhã, Jornal dos Sports e Última Hora. Neste último, assinou uma coluna que ficou muito famosa, intitulada “Geléia geral”, em que comentava de tudo o que se referisse a arte de vanguarda, quer Literatura, quer cinema, música, artes plásticas e comportamento. É considerado, com justiça, como um dos mentores do “Tropicalismo”, movimento do qual escreveu uma espécie de “Breviário”. Como letrista, foi parceiro dos maiores astros da MPB da época, em composições hoje consideradas como “clássicos”, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Luís Melodia, Jards Macalé, João Bosco, Sérgio Britto, Edu Lobo, Nonato Buzar, Geraldo Azevedo, Geraldo Vandré, Capinam e Roberto Menescal, entre tantos outros. Cataloguei pelo menos 45 composições de sua autoria de enorme sucesso.

Como um sujeito tão criativo e aparentemente lúcido pôde ter a péssima idéia de dar cabo da vida? Não creio que haja justificativas minimamente lógicas. É verdade que o ambiente sombrio, diria “claustrofóbico” do País, naqueles “anos de chumbo”, muito contribuiu para isso. Após a edição do famigerado AI5, por exemplo, oportunidade em que seus amigos Gilberto Gil e Caetano Veloso chegaram a ser exilados, Torquato decidiu “respirar” outros ares menos pestilentos. Viajou pela Europa e Estados Unidos e chegou a residir, por pouco tempo, em Londres. Ao regressar ao Rio, o ambiente não havia melhorado. Pelo contrário. Além disso, o jovem poeta viu-se às voltas  com o alcoolismo, do qual não conseguiu se livrar. Rompeu muitas e antigas amizades, por motivos banais e não raro sem causa alguma. Torquato Neto cometeu suicídio um dia após completar 28 anos, ou seja, em 10 de novembro de 1972.

Fez a bobagem após regressar de uma festa. Chegou tarde em casa, andando de mansinho para não despertar a esposa e o filho Thiago, de dois anos. Dirigiu-se para o banheiro, abriu o registro de gás do chuveiro e... partiu para o desconhecido. Deixou, como todo suicida, um bilhete de despedida, nos seguintes termos: "FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. De modo que FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa de este amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar".  A pessoa que Torquato não queria que “sacudissem demais” era seu filho. Thiago de Araújo Nunes viria a se tornar piloto de uma companhia aérea brasileira de grande prestígio. Não sei dizer se ainda continua na ativa. Presumo que já tenha se aposentado.

A quem quiser conhecer mais sobre a vida e a obra de Torquato Neto, recomendo que compre uma das tantas biografias escritas a seu respeito. Há algumas muito boas e completas. Se me pedissem, todavia, uma definição bastante sucinta sobre essa personalidade da nossa contracultura, expoente e um dos criadores do Tropicalismo, eu diria, sem fugir ao respeito, simplesmente: “Foi um gênio de talento incomensurável, mas de pouco ou nenhum juízo”. Imagino o quanto mais ele poderia ter feito por nossa arte e cultura se estivesse vivo e prestes a completar setenta anos de vida. Mas...

Boa leitura.


O Edito

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Um comentário:

  1. Impressiona pessoas que vivem tanto em tão pouco tempo. Dão a impressão de que, devido ao fazer acelerado, cansam da vida por já terem vivido demais.

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