domingo, 18 de maio de 2014

Uma cachacinha antes do futebol

 * Por Deonísio da Silva

O Juca Kfouri garantiu na capa da Caros Amigos: “O Brasil não vai ganhar a Copa. Haverá manipulação”. Profecia cumprida!
  
Mas na mesma semana decisiva, a quarta-feira terminou assim: Antônio me ofereceu um trago da cachaça portuguesa Ferreirinha. Ele é feio que dói, o Antônio, tem cara de sapo, mas como todo sapo tem uns olhos doces, segundo sua namorada, ou uma delas, não sei, mas essa me diz que ele tem olhos doces. É uma loura gaúcha e trabalha como recepcionista no restaurante, bar, adega e cantina combinados.
  
Quando a loura diz que o Antônio tem olhos doces – ela teve que procurar para achar algo bonito no Antônio – sempre tem que ouvir de um garçom maroto o seguinte comentário: “Que a mulher do sapo ache o sapo bonito, eu entendo, mas que uma linda loura ache um sapão desses lindão, essa eu não entendo”.
  
A cachaça Ferreirinha é uma bebida deliciosa. Não é popular porque é muito cara. Mais cara do que uísques de qualidade. O barman Aírton despeja uísque com a cara de sempre, mas quando o cliente pede uma Ferreirinha, seu rosto brilha e ele fica fulo de raiva consigo mesmo quando derrama uma gota fora do copo. E ainda tem que ouvir, se o Guilherme está por perto, a insinuação de que é baitola: “Ei até o Aírton mija fora da bacia?”.
  
A boa cachaça é tomada na moita. Até o presidente Lula, que, como brasileiro, adora uma cachacinha, quase criou um incidente diplomático quando o correspondente Larry Rohter, do New York Times, que mora aqui no Rio, disse que ele bebia uma cachacinha.
  
E quando o Ronaldo quis ofender o presidente, que queria saber se ele estava gordo, retrucou com um estranho silogismo: “se ele era gordo, Lula era bêbado”.A quem é meio entendedor, caso de TODOS os brasileiros, menos muitos eleitores de Lula, meia palavra basta. E Ronaldo disse com todos os efes e erres. Mas alguns acham, como Gottfried Benn, que a realidade não existe.
  
Tenho amigos e colegas de trabalho petistas que me lembram outros versos de Gottfried Benn, aqueles de Einsamer nie (Mais solidão, nunca!), que terminam assim: Wo alles sich durch Glück beweist/ und tauscht den Blick und tauscht die Ringe/ im Weingeruch, im Rausch der Dinge -/ Dienst du dem Gegenglück, dem Geist (Onde tudo está dependendo da sorte/  E de olhares e anéis igualmente trocados/ No sussurro das coisas, no perfume dos vinhos/ Tu serves ao antônimo do pleno, do pensamento).
  
Na quarta-feira à noite combinamos ver o jogo Brasil x França num telão no Borsalino, na Barra da Tijuca. Havia dois ambientes. Um, na boate Nuti, ao lado, cobrava trinta reais por pessoa com consumo livre. Outro, no bar do Borsalino, de graça. Fui onde estava o povo, pois, como ensina Milton Nascimento, o escritor, como o artista, tem que ir aonde o povo está. Com a vantagem de que é mais barato e mais divertido.
  
Mas carioca é tratante que nossa! E depois se justifica com uma delicadeza comovente: “cara, eu não presto, me esquecer justo de um convite que fiz para você, você é para mim um escritor mais importante do que Dostoiévski,  é como se um reles francês – sim, porque perto de você eu não sou mais do que um reles brasileiro – esquecesse de ir a um encontro com Marcel Proust, entende?”. “Menas, menas”, eu digo como o presidente Lula.
  
A maioria esqueceu de ir! A editora de televisão que nos deu carona, ao entrar no Borsalino deu de cara com uma amiga da infância, de Santa Rosa-RS. O reconhecimento deu-se à primeira vista e lá se foram as duas para a nossa mesa. Nem viram direito o jogo, as lembranças da infância foram mais fortes. Além da Xuxa, há muita gente do RS aqui, principalmente, como é natural, nas churrascarias.
  
Deveríamos trabalhar e por isso deixamos o jogo no intervalo, com medo do trânsito. Daí veio a segunda surpresa: os cariocas que nos convidaram não tinham ido ao Borsalino nem ao trabalho! Foram para Angra, Mangaratiba, Petrópolis, Teresópolis, Nova Friburgo etc. Afinal, fariam com a sexta-feira o que foi feito com Tiradentes. Outro dia passei onde ele foi enforcado. Ali agora há uma lojinha.
  
Mas este é outro assunto. Lembrei porque Sexta-feira é o nome do amigo do Robinson Crusoé. Se o náufrago tivesse encontrado o silvícola em outro dia da semana, ele se chamaria sábado, domingo, segunda-feira, algo assim.
  
Para nós, brasileiros, hoje, domingo, dia 2 de julho, é de ressaca total. Perder, tudo bem, faz parte da vida. Mas jogando daquele modo contra a França! Como o Brasil jogou mal, meu Deus do céu!
  
* Escritor, Doutor em Letras pela USP, autor de 30 livros, alguns transpostos para teatro e TV. Assina colunas semanais na Caras e no Observatório da Imprensa. Dirige o Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio.


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