domingo, 25 de maio de 2014

Arte sem concessões

 * Por Pedro J. Bondaczuk


A vida em comunidade – quer seja uma família, quer uma empresa, quer um clube ou a própria sociedade – é caracterizada por concessões. Submetemo-nos a regras – escritas ou não, oriundas da tradição ou criadas ao sabor das necessidades, quando não dos caprichos de quem criou – do nascimento à morte.

A todo o instante, desde que tomamos consciência de nós e do mundo, somos forçados a fazer o que não queremos, o que não gostamos ou o que entendemos desnecessário ou inútil. Mas quando viemos para este jogo, para este baile, para este imenso teatro surrealista, as normas que os regulamentavam já estavam estatuídas, sem que fôssemos consultados.

Podemos, eventualmente, influenciar em um ou outro dos seus aspectos secundários. Mesmo para isso, temos que contar com um poder de convencimento bastante acima da média ou com qualquer outra forma de pressão, lícita ou não. Todavia, quanto ao essencial, somos sempre forçados a nos submeter, sem contestação.

No lar, por exemplo, aprendemos muito cedo o princípio da autoridade, representada pelas figuras dos nossos pais. Quantas de suas ordens e proibições são absurdas, emocionais e sem sentido?! E, no entanto, somos obrigados a acatar, por uma questão moral: a do respeito à hierarquia.

Não há escola de ditadura mais completa, perfeita e acabada do que esta, mesmo que a nossa submissão a essa autoridade paterna ocorra de forma consensual, por amor recíproco. No relacionamento entre pais e filhos, na maioria das vezes, não há diálogo.

Ao adulto compete mandar. Já a obrigação do mais jovem é obedecer. Concorde ou não. Goste ou não. Precise ou não. Isto é assim desde o princípio da humanidade. Prevalece o "senso" de autoridade. E esta é apenas uma das múltiplas concessões que temos que fazer diariamente, ao longo da vida.

Nenhuma pessoa, mesmo que ocupe altas funções de poder, goza de irrestrita liberdade. Quando não está submetida a outras, o está a leis e instituições. Nenhum ditador, por exemplo, se sustenta sem a lealdade do exército ou a subserviência do Judiciário, ou a cooperação dos que lucram com a ditadura, ou o medo dos adversários. Mas estes grupos exigem a contrapartida.

Outras concessões, ainda mais profundas, com implicações muito maiores para o nosso amor próprio e para a nossa felicidade, do que as das relações em família, terão que ser feitas, sob pena de sermos considerados rebeldes, inadaptados, sociopatas, quando não marginais.

A escola em que estudamos, as matérias ensinadas, o trabalho que teremos que exercer, etc.etc.etc, em geral são alheios à nossa escolha. São outras tantas ditaduras que nos manipulam, exploram e ameaçam. São imposições das quais não podemos escapar. E somos obrigados a nos submeter, por bem ou por mal. Temos que fazer concessões.

O mesmo acontece no que se convencionou chamar de "amor". No Ocidente, o relacionamento amoroso, até por uma questão de tradição, foi transformado em uma espécie de jogo de poder entre um homem e uma mulher. A partir do instante em que ambos assumem o compromisso tácito de se ligar afetivamente, instintivamente se sentem "proprietários" um do outro.

A cessão de uma parcela da liberdade individual, de parte a parte, quase nunca é espontânea, ditada apenas pelo afeto. É mais uma obrigação que nos é ensinada, quando não imposta. Caso não pretendamos acabar sozinhos na vida, temos que nos submeter. Nessa disputa, sempre alguém acaba sendo o dominado. Raros são os casos de igualdade de direitos e deveres. Mas mesmo que sejamos os dominadores, temos que fazer concessões e não poucas.

Por isso, repudio a arte engessada, manietada, amarrada a regras e convenções. A criação artística precisa ser livre. Tem que brotar da essência do nosso ser. Deve refletir o que somos de verdade e não o marionete manipulável em que a sociedade nos transforma. Tem que ser pura emoção. À racionalidade destina-se a filosofia e, por conseqüência, as ciências, suas filhas.

A arte precisa ser instintiva, natural, selvagem. Trata-se da única forma de sermos autênticos. É a nossa carta de alforria, a absoluta e irrestrita liberdade. Ninguém é forçado a ser artista: músico, escritor, pintor, escultor, poeta... É uma escolha pessoal. Ou é ou não é. É o modo de que cada um dispõe para ser livre, para impor a personalidade, para deixar a marca no mundo.

A aceitação ou não do que o artista produzir vai depender de critérios subjetivos de apreciação e avaliação dos destinatários. É um risco a correr. A obra pode não ser aceita, no presente ou no futuro. Pode não despertar nenhuma emoção nos espectadores. Pode não encontrar acolhida em ninguém. Pode não transmitir qualquer mensagem. Pode já nascer morta.

Ainda assim será válida, como reprodução da visão pessoal do mundo de quem a produziu. Mas que não se confunda arte com artesanato. A primeira é a expressão maior de uma emoção. A segunda, em geral, é caracterizada por uma série de objetos bonitinhos, ou funcionais, ou bizarros, mas produzidos em moldes pré-fabricados, com funções práticas, reproduzíveis quantas vezes se quiser e por quem se dispuser. Nesse ponto, qualquer concessão é a maior das auto-violentações. A arte é o nosso "DNA". É o nosso ser. É a nossa vez. É a nossa voz...e única...


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk  

Um comentário:

  1. Mostro total ignorância, mas acabo me divertindo quando leio um crítico de arte explicando ao autor da dita cuja o que ele sentiu e o que ele quis dizer ao fazer a coisa assim e não assado.

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