sexta-feira, 23 de maio de 2014

Liêdo e o Mercado de São José

* Por Urariano Mota

Liêdo Maranhão de Souza e o Mercado de São José constituem uma só pessoa. Ambos nascidos no Recife, Liêdo é quem fala pelo Mercado, assim como um boneco e seu ventríloquo. Liêdo, o mais jovem, tem apenas 88 anos, enquanto o Mercado anda pelos 138. Às vezes penso que sem Liêdo Maranhão não haveria o Mercado de São José. Pelo menos não existiria o Mercado em sua face humana.

Autor de 14 livros, não fosse Liêdo Maranhão, boa parte da vida popular do Nordeste que veio ao Mercado de São José estaria sem registro. Ele, como pesquisador, até parece um homem sem escrúpulo, sem freios, porque recupera sem piedade a fala do povo com um obsessão até o limite do pornográfico. Se pensam que nisso há exagero, eis algumas falas gravadas no seu livro Fala Povão:  

De Cícero, um barraqueiro: “Não perca uma trepada, porque nunca mais você recupera. Pode dar outra, mas aquela está perdida” .

De Conceição, faxineira: “Eu só enjeito pisa”. Aí eu disse a ela: – “Opa, eu entendi pica”. E ela: – “Pica eu não enjeito não, doutor”.

De Socorro: - Eu não tenho medo de AIDS, porque a minha boceta eu lavo muito bem lavada. Só não lavo com solução de bateria.

De Rubens, o popular Rubens, vangloriando-se: - “Eu estou com 80 anos e ainda tenho tesão”. A isso observou o sebista Melquisedec: - “Então você não usou, guardou”.

De Zé, da Lanchonete Chá Mate Brasília: - Silva é um menino de ouro! Se derreter, dá o anel.

De um freqüentador do bar do Gregório: - Eu estou com uma menina nova, mas é só penetração do primeiro grau.

Do pastor José Luiz, na praça, pregando o evangelho: - Paulo disse: “Bom seria que o homem não tocasse em mulher”. E agora estão dizendo que Paulo era bicha!...

Do professor Viana, materialista, discutindo religião na praça: - Todo cristão é masoquista de carteirinha! Ele perde um braço e diz: “Graças a Deus eu fiquei com o outro”.

De um vendedor ambulante, para um amigo: - O pastor tá metendo a aleluia na irmã!

Esse registro de Liêdo da fala do povo, a fala crua, esse flagrante que dá os nomes rejeitados pela formação hipócrita como chulos, com uma verdade que nos faz rir, como se o popular fosse uma criança crescida, vocês vão me perdoar, vocês não vão encontrar isso nem no Lazarilho de Tormes. Por isso lhe pergunto como é o seu método, como ele consegue ser tão fiel à voz das pessoas do Mercado de São José.

“Eu comecei com o gravador. Tinha momento que o camarada dizia assim, ‘doutor, eu só digo isso se o senhor desligar esse gravador’. Eram coisas íntimas, particulares, que ele não queria falar para o mundo. Aí resolvi acabar com o gravador. Então eu ficava conversando o camarada, e eu dizia ‘espere aí um momentinho, que a minha mulher está me esperando ali na igreja’. Aí eu já tinha um caderno, chegava na igreja, começava a escrever o que eu tinha ouvido. Aquelas coisas de sexo, eu escrevia dentro da igreja. Depois eu voltava pra conversar mais. 

Mas com os camelôs era o seguinte: eu passei 10 anos ali, diariamente. Então eu já sabia o ‘disco’ de cada um. Aquilo tudo ali é muito bonito, muito criativo, muito poético... Lá na praça tinha uma prostituta, Maria. Ela tinha vários apelidos: era Maria Branquinha, Maria Doida, Maria Chega Cedo, Maria Ligeirinho, porque ela quando estava com um homem, batia nas costas dele, dizendo ‘vá, meu filho, goze logo, vá’. Eu dava a maior atenção a ela. Então ela dizia a mim: ‘olhe, doutor Liêdo, eu gosto do senhor, porque o senhor só gosta de rapariga, gente baixa e cabra safado’. Isso pra dizer que eu gostava do povo da praça do mercado.

É difícil dizer qual a pessoa mais marcante. Um tem um lado mais bonito, outro mais criativo, outro mais engraçado... Por exemplo, o camelô Fazendeiro. Lembro que tinha uma escultura minha, de ferro, que a Prefeitura do Recife comprou, era uma homenagem ao Papa, à passagem do Papa no Recife. E Fazendeiro trabalhava defronte à escultura. Na época, saiu no jornal que a Prefeitura tinha comprado a escultura por vinte mil reais. E ele vendia umas pomadinhas a 1 real cada. Um dia, quando ele tinha terminado as vendas dele, ficou olhando a escultura. E me disse: ‘Mas doutor, o senhor botou no cu daquele Papa direitinho...’.

Tinha uma prostituta lá, Isabel. Vivia na frente do antigo cinema Glória, ‘batendo calçada’, como o povo diz. Ela chegou pra mim e disse: ‘meu filhinho, eu sonhei com você hoje’. Eu disse: ‘jogue veado’. E ela: ‘Deu veado ontem, mas eu não vou jogar não, porque você não tem nada de veado. Quisera eu ter um veadinho desse’. Quando ela me viu pela primeira vez, ela chegou e disse: ‘Meu filhinho, você tem um cigarro?’ Eu respondi: ‘Meu amor, eu não fumo’. Ela disse: ‘Não fuma, mas mete...’. E eu: ‘Meto, mas estou esperando um amigo’. Eu esperava Fernando Spencer, o cineasta. Não sei o que ela pensou depois, quando me viu junto dele...”

No entanto, diferente de quem pensa que as coisas da terra brotam feito raiz, puras,  Liêdo Maranhão explica como descobriu o povo do Mercado de São José:

“A minha sensibilidade pelas coisas daqui, por incrível que pareça, começou na Espanha. Uma vez, eu estava em Madri, e num dia de domingo, um pintor brasileiro, Gerson Tavares, pintor e cineasta, me convidou: ‘Liêdo, vamos ao Prado?’. Eu respondi: ‘Rapaz, eu não gosto de corrida de cavalo não’. Então ele disse: ‘Mas rapaz, você é grosso que é danado. O Prado é a maior coleção de pinturas do mundo, e você vem com negócio de corrida de cavalo?’. Eu fiquei com uma vergonha tão grande... quando eu cheguei lá e vi quadro do tamanho dessa parede (aponta o terraço da sua casa), ‘A rendição de Breda’, as figuras de tamanho natural. Tinha um cavalo castanho, aquela coisa brilhando, como se estivesse escovado... então aquilo me tocou, sabe? Então eu comecei a frequentar o Prado. Todos os dias eu ia lá. Fiz o meu aprendizado de arte.

Quando eu voltei ao Recife, aí eu fiquei mais brasileiro. Passei três anos fora, aí vi que tinha muita coisa pra fazer. A gente fica mais brasileiro. Note por quê. Na Espanha tem o palácio da Alhambra, um palácio árabe muito bonito. E um americano, estudioso do islamismo, foi para Granada. E fala com o prefeito pra morar no palácio. Na época, estava abandonado, completamente. Aí o prefeito respondeu: ‘Olha, ali só vive malandro, vagabundo, ladrão. Que é que você vai fazer ali?’. E ele argumentou: ‘Eu não tenho nada pra me roubarem’. E foi. E aqueles vagabundos, que viviam lá, começaram a cercar o americano, a fantasiar e contar história. Então ele, era o escritor Washington Irving, escreveu um livro, Cuentos de La Alhambra, Contos da Alhambra. E por isso o governo espanhol se interessou e restaurou, e lá tem uma placa com a frase ‘aqui viveu Washinton Irving’. Então quando eu cheguei na praça do Mercado de São José, o pessoal começou a contar coisa de mulher, de remédio, eu me disse: ‘Pronto, aqui é minha Alhambra”. Se eu não tivesse saído do Recife, eu não era o que sou. A minha fome do meu povo. Me descobri. Nunca pensei que tinha isso. Aí começou a minha Alhambra. Aí eu fui pro Mercado.

Aquele livro que eu tenho, ‘O Mercado, sua praça e a cultura popular do Nordeste’, motivado por ele, uma vez eu levei Athos Bulcão, um arquiteto da equipe de Niemeyer. Athos Bulcão me disse: ‘Liêdo, isso é a Grécia antiga. Isso é o teatro antigo da Grécia, esse pessoal aí na praça, representando’. Ele se referia aos camelôs, os come-vidro, engole-cobra, os cantadores, mas sobretudo aos camelôs de remédio, que são muito inteligentes. Inventam até nomes para as drogas que vendem. Tem uma que é a ‘Resina da Gerimataia’. Outro: ‘Banha do peixe-elétrico’. Eu vou te contar uma de um camelô, pra você ver que beleza. Tinha um que vendia catuaba, que era pra tesão, aquela coisa afrodisíaca. Ali é um ambiente de mulher, de prostituta... então ele com a garrafa na mão, uma ‘garrafada’, aquele pessoal todo ao redor, a gente chamava ele de Fazendeiro, porque usava um chapelão, era muito gordo. Pois Fazendeiro pegava a garrafa e dizia: ‘Isso aqui é pra esses tipos de homem que chega em casa de noite, se deita com a mulher, e fica fundo com fundo, feito casa de vila’. E continuava: ‘Agora você compra este remédio e dê à nega véia, que a nega véia fica quente que só fundo de chaleira. Porque o homem que compra o remédio e não dá à mulher, duas coisas acontecem: ou ele tá liso, ou ele não gosta da mulher’. Outro camelô dizia assim: ‘O homem mais a mulher é como uma balança: quando um sobe, o outro sobe, quando um desce, o outro desce, quando um chega, o outro chega, aí é tutu com tutu e bumbum com bumbum’. Eu tenho tudo isso anotado. Eu tenho um livro com tudo isso, ‘Marketing dos camelôs de remédio’.

Quando lhe pergunto quem é Liêdo Maranhão, ele me responde:

“Sou Liêdo Maranhão de Souza, nascido em 3 de julho de 1925, no Recife, bairro de São José. Sou dentista e esquizofrênico cíclico, como um amigo psiquiatra já me disse. Sou poliglota: falo espanhol, francês, e falo gago também”.

Mas seria mais próprio saber quem ele é pelo que ele salva, como neste registro:

“Microfone é um barraqueiro famoso, do Mercado. Uma vez, um freguês  tomando uma sopa no boxe de Microfone, no Mercado, achou uma pedrinha na sopa. Aí o cara reclamou: ‘Microfone, nessa sopa tem pedra’. E Microfone, no ato: ‘Olhe, se fosse brilhante, você não dizia nada’. E completou, pra fulminar: ‘Pedra em sopa é fato natural’. Eu lembro que Microfone, quando foi entrevistado no Fantástico, o repórter perguntou a ele de onde vinha o apelido Microfone. E ele respondeu: ‘Vem da minha loquacidade, porque eu sou muito loquaz’. Eu notei que o repórter ficou todo desconfiado, sem saber o significado de loquaz. Feito a história do camarada que foi assistir a um filme, e quando saiu, um conhecido perguntou a ele: ‘Que tal o filme?’. Ele disse: ‘Rapaz, tem uns bons close-ups’. O cara voltou: ‘E o que é close-up?’. E ele respondeu: ‘Rapaz, deixe eu viver em paz...’. É uma beleza, não é?”

Sem dúvida, essa entrega à pesquisa e registro do povo são uma beleza.

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Em “Dicionário Amoroso do Recife”
 “Dicionário Amoroso do Recife”, a intensa carta de amor da cidade pernambucana para os recifenses, pode ser encontrado na Livraria Cultura Paço Alfândega, no Recife Antigo, e também aqui, na Livraria Cultura.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. A espontaneidade pode ferir ouvidos sensíveis (e falsos), porém, rende excelentes gargalhadas. Personagem e texto imperdíveis.

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